Em março de 1964, o tenente José Wilson, conhecido como Capitão Wilson, passou 60 horas acordado: de quando soube que o general Olympio Mourão havia deixado Minas Gerais para derrubar João Goulart até o momento em que viu o presidente sair do país. Ao ouvir outro oficial Mourão (o general Antonio Hamilton Mourão) falar, em setembro, em nova intervenção militar, ele voltou aos dias de 1964. Diz não querer “estar na pele dos milicos de hoje”, é o que revela reportagem de Fernanda Canofre, para a Folha.
Não tinha como prever o golpe, mas tinha como cheirar. Era nítido que ele vinha. O Jango [presidente João Goulart] achava que, como das outras vezes, aquilo se desgastaria e ninguém ousaria fazer alguma coisa. O Assis Brasil, chefe da Casa Militar, dizia: “Esses caras não sabem, mas a hora em que meterem a cabeça para fora, nós cortaremos o pescoço”. E não foi assim. O esquema era fraco.
Quando as rádios começaram a noticiar que o general Olympio Mourão tinha saído com as tropas de Minas Gerais, no dia 30 de março, tudo ficou meio confuso. A gente já vinha havia quase dois anos em uma atividade política intensa, desde que organizamos o movimento da Legalidade, em 1961, para que o Jango assumisse a Presidência, depois da renúncia do Jânio Quadros.
Quando veio a notícia que o Mourão tinha saído, ninguém acreditava, achávamos que era boato. Já tínhamos tido alarmes falsos. Eu cansei de levantar de madrugada, pegar minha camionetinha e ir até o REC-MEC (Regimento Mecanizado), em Porto Alegre, para ver a tropa. Parece papel de tolo, né? Mas era o que precisava fazer.
O Exército sempre teve duas correntes. Uma nacionalista, popular, com alguns comunistas, mas nem tantos, porque comunismo é um bicho-papão mo Exército. Eu militava nessa corrente.
A outra era direitista e conservadora, que a partir da Segunda Guerra começou a puxar para uma linha filo-americana. A americanofilia veio da guerra, quando o Brasil foi para a Itália lutar com as tropas dos EUA. Os soldados estavam sempre juntos em escolas e cursos. Veio disso.
Um golpe militar não acontece de uma hora para a outra. Desde 1954, havia uma preparação, e isso se acelerou quando o Jango assumiu. Tem que preparar banqueiros, sistemas financeiro e político.
Nessa época, a América Latina pululava de governos populares de esquerda, então tinha que derrubar o Brasil. Era o exemplo. Caiu tudo depois.
Os golpistas tinham certeza que o Sul queria repetir 1961. Por isso que eles tinham como capital Minas Gerais.
Estavam preparando em Florianópolis uma base para resistir. [Leonel] Brizola levava para Jango o nosso esquema militar e ele dizia: “Nós já estamos a par, deixa que vamos tomar uma providência”. O Jango já estava vindo para Porto Alegre. Mas, no fim, ele não quis resistir.
Depois do golpe, eu segui para o Uruguai, vivi lá por sete anos, muito arrasado e com raiva do Jango. Com muita frustração. Participei de tudo até o último instante. Ataquei ele, a caminho do embarque. “O senhor não vai sair e nos deixar, está tudo preparado.”
Nós éramos jovens, estávamos preparados para morrer, mas não para entregar tudo como foi entregue. O golpe foi uma ocupação de cadeira vazia. A cadeira ficou vazia, os militares chegaram.
Esse general [Antonio Hamilton Mourão] que falou em intervenção militar tinha que ser punido, senão vira bagunça. O comandante tem que ter ação sobre o subordinado. Se ele se posiciona fora da lei, está abrindo uma brecha para que o subordinado não o respeite. Ele respeita porque existe uma legislação.
Ao mesmo tempo, entendo que para os militares nacionalistas deve ser difícil ver esse governo que está aí, com um monte de denúncias e ter que defendê-lo. Imagina esses milicos, metidos a corretos, sejam de esquerda ou direita, defender um governo desses? Como estão se sentindo? Eu não queria estar na pele dos milicos de hoje.
EXEMPLO
Para quem fala que não houve ditadura no Brasil, vou contar uma história. Anos antes de o Jango assumir, veio para cá uma exposição itinerante da Rússia. Era um navio que ficava ancorado, o povo podia visitar, ver sobre a indústria e a vida na Rússia. Dois soldados do grupo dos paraquedistas foram visitar e pegaram os folhetos que estavam distribuindo. Com o tempo até esqueceram.
Passados alguns anos, veio o golpe, entraram nos quartos de todos os milicos para revistar e encontraram o panfleto. O amigo tinha esquecido. Levaram o cara para ser interrogado. Ele nunca militou em nada, nunca foi comunista.
Ele foi colocado em uma mesa. Amarraram mãos e pés nos quatro cantos. Depois de baterem nele, colocaram uma vela acesa no ânus e deixaram queimar até o final. Esse cara ficou com todo tipo de problema que você pode imaginar. Isso era o governo militar. Tudo porque tinha um panfleto.