“Eu vou te matar”, anunciou o adolescente de 14 anos a João Pedro Calembo, de 13, na manhã da sexta-feira 20 de outubro, enquanto assistiam à aula de ciências no 3º andar do Colégio Goyases, escola particular de educação infantil e ensino fundamental de um bairro de classe média baixa em Goiânia. Para mostrar que não estava de brincadeira, abriu a mochila e perguntou ao colega se ele queria ver a arma que trazia consigo. Exibiu um objeto preto que não despertou a curiosidade de ninguém. A maioria dos alunos que presenciaram a cena contou, mais tarde, que todos pensaram se tratar de uma caixa de óculos. A turma não costumava levar a sério as ameaças. Afinal, não era a primeira vez que o garoto as fazia. Sempre que se sentia acuado ao ser alvo de brincadeiras e bullying, ele prometia acabar com a vida dos zombeteiros. Naquela semana, porém, durante uma conversa, o tom havia subido.
Um episódio deixara o menino profundamente irritado. Chamado de “fedorento” pelos estudantes em sala de aula porque, segundo eles, “cheirava mal” e “não tomava banho”, o garoto sentiu-se humilhado. Foi atacado por esguichos de um desodorante em spray que João Pedro Calembo havia levado à escola na quarta-feira daquela semana. As ofensas contrariavam a personalidade de quem demonstrava, em casa, ter cuidado com a aparência. “Ele nos contou que, depois desse caso com o spray, decidiu matar”, diz o delegado Luiz Gonzaga Júnior, da Delegacia de Polícia de Apuração de Atos Infracionais de Goiânia. O alvo inicial seria João Pedro e sua família. O adolescente decidira ir até a casa do colega, a 750 metros da escola. Mudou de ideia quando se deu conta de que seria mais fácil atingi-lo na sala de aula. Eles se sentavam a uma carteira de distância, informa publicação da Veja.
Ideias estranhas – Em conversas por Skype, o garoto (círculo vermelho) tenta convencer um colega de que Hitler e o nazismo foram bons para o mundo (Skype/Reprodução)
Às 11h40 da sexta-feira, o sinal estava prestes a soar. A professora do 8º ano finalizava a aula, esclarecendo dúvidas sobre a feira de ciências que seria realizada no dia seguinte. Nervoso, o garoto levantou-se abruptamente e começou a tirar da mochila o objeto preto parecido com uma caixa de óculos — era uma pistola calibre 40. Deu um primeiro disparo no susto, com a arma ainda oculta. O barulho chamou a atenção dos alunos, mas não gerou pânico. A maioria imaginou que pudesse ser o estouro de um dos frágeis balões de ensaio da feira estudantil. Eles tomaram consciência do que estavam por viver ao verem o adolescente mirar João Pedro e lhe acertar três tiros à queima-roupa. A morte foi instantânea. “Vou matar todo mundo”, gritou o atirador, descarregando o pente de doze balas aleatoriamente, num movimento circular. Além de João Pedro, cinco alunos foram atingidos: João Vitor Gomes e Hyago Marques, ambos de 13 anos, Isadora de Morais, Lara Fleury e Marcela Macedo, as três de 14 anos. João Vitor Gomes também morreu imediatamente, com um tiro na cabeça. Ele era o melhor amigo do algoz.
O recomeço – Alunos e funcionários do Colégio Goyases, vítimas e familiares se reuniram em frente à escola no dia 24 para uma cerimônia ecumênica. As aulas voltarão ao normal no dia 30. (Jefferson Coppola/VEJA)
Do lado de fora da escola, os pais se aglomeravam para buscar os alunos da educação infantil, que saíam mais cedo que os do fundamental. O publicitário Leonardo Calembo fora buscar seus três filhos. “Só levei dois vivos para casa”, disse, no dia do crime. Calembo é pai também de Gustavo, de 8 anos, e Davi, de 6 anos. Com a correria e os gritos, deu-se o pânico. Num primeiro momento, o temor era que bandidos tivessem invadido a escola. Um grupo de meninas do 8º ano saiu correndo, gritando pela rua: “Tiros, tiros!”. Vizinhos fecharam as portas e janelas. Alunos de outras salas correram para se esconder na cantina, numa igreja evangélica e na delegacia ao lado da escola. Não demorou para que a rua pacata, que antes só era tumultuada pelo tráfego de pais, fosse tomada por viaturas policiais e um helicóptero para o resgate de feridos. “Desde aquele dia, a rua ficou triste. Ainda me lembro das crianças chorando”, diz a cabeleireira Fabiana Quintas, que mora nas proximidades.
O adolescente que cometera o crime continuava na sala de aula. Com respiração ofegante, parecia atônito, mas não paralisado. Ao perceber que o primeiro pente de munição havia acabado, sacou da mochila, entre os cadernos, uma recarga de doze balas. Os colegas estavam caídos no chão. A coordenadora da escola, Simone Elteto, resolveu intervir, mesmo diante do garoto armado. Ele apontava a pistola para a própria cabeça quando Simone conseguiu entrar na sala. “Não faça isso. Fique tranquilo. Abaixe a arma”, pediu-lhe a coordenadora, com a voz trêmula. O garoto disse que queria a presença de seu pai, enquanto fazia um novo disparo para trás, sem vítima. “Chama meu pai. Ele é polícia”, gritou. Divino Malaquias, o pai, é major da Polícia Militar de Goiás. A mãe, Wanderlúcia, é sargento da corporação.
O recomeço – O pai do atirador, major Malaquias, disse que o filho teve acesso à arma dentro da própria casa, mas que nunca o ensinou a atirar (TV Serra Dourada/Reprodução)
A coordenadora conseguiu dissuadir o garoto de seguir atirando e o convenceu a travar a pistola e mantê-la apontada para baixo até a chegada da polícia, dez minutos depois do primeiro tiro. Aos agentes, o adolescente disse que ia, de fato, se matar se a coordenadora não tivesse intercedido. Psicólogos que o acompanharam na delegacia também disseram que ele ficou “arrasado” por ter matado João Vitor, um de seus melhores amigos. Os dois costumavam andar juntos e estavam no mesmo grupo da mostra de ciência.
O matador contou à polícia que passou os últimos dois meses pesquisando sobre o massacre de Columbine, nos Estados Unidos, em abril de 1999, e o de Realengo, no Rio de Janeiro, em abril de 2011, em que alunos foram assassinados por indivíduos que alegavam sofrer bullying. “Ele falou dos massacres sem perguntarmos sobre eles. Disse que foram sua inspiração, que tinha se identificado com os autores”, afirmou o delegado Gonzaga Júnior. Segundo ele, o garoto narrou com detalhes os casos, dedicando-se sobretudo a descrever o desfecho, com o suicídio dos atiradores. “Ele conhecia todas as circunstâncias que envolveram os episódios e toda a repercussão que tiveram. Planejou, pegou a arma um dia antes e a levou à escola para matar seu desafeto.”
Sonhos interrompidos – Lara (à esq.) foi atingida no pulso, enquanto Isadora (a primeira à direita, em cima)pode ficar paraplégica. Marcela teve o pulmão perfurado. Hyago, com uma bala alojada na perna, já recebeu alta hospitalar (Jefferson Coppola/VEJA)
O jovem assassino era conhecido por ser um dos alunos mais inteligentes da turma. Os colegas o descrevem como alguém bastante introvertido que andava sempre calado e de cabeça baixa. Nas poucas vezes em que falava, era sobre jogos de videogame e coisas da internet. Apesar do bom desempenho do estudante, seus pais foram chamados duas vezes à escola entre 2016 e 2017. No início do ano passado, a diretoria recomendou que eles procurassem um psicólogo que pudesse ajudar o filho a vencer a timidez. Ele chegou a fazer sete sessões de terapia, mas parou depois de a psicóloga dizer aos pais que o rapaz não tinha nenhum problema e que era “promissor”. No início de 2017, professores voltaram a chamar os pais porque notaram que ideias estranhas estavam começando a aparecer na cabeça do garoto. Nas redações, passou a exibir um viés exageradamente radical, fora do comum para a idade. Em um trabalho sobre ética, louvou o regime militar, desenhou suásticas em folhas de caderno e nos próprios braços. Os policiais encontraram o símbolo nazista riscado na madeira da cama do jovem. Na escola, colegas relatavam que ele dizia admirar Adolf Hitler. A advogada da família, Rosângela Magalhães, afirmou que os parentes desconheciam a simpatia do adolescente por Hitler, mas confirmou seu hábito de desenhar suásticas, apesar de declarar que isso não passava de “brincadeira de menino que quer se fazer de mau mas não sabe direito o que o dístico significa”. No entanto, não era apenas uma brincadeira.
VEJA teve acesso com exclusividade a uma troca de mensagens via Skype, ocorrida entre abril e outubro deste ano, em que o garoto tentava convencer um de seus colegas de que o Holocausto era uma invenção e Hitler não dizimara os judeus da Europa. Municiado de links que levavam a sites de notícias evidentemente falsas, tentou argumentar com o amigo que o nazismo fora positivo para a humanidade. Compartilhou fotos e vídeos sobre “os benefícios do nazismo” e “a farsa do Holocausto”, além de discursos do Führer. Diante da descrença do colega, chamou-o de “ignorante”. Em outra mensagem, o interlocutor lhe pede que não fale sobre nazismo na frente de sua família. “Vc não pode xingar nem falar de Hitler na minha casa, ok?”. “É claro, eu jamais faria isso. A culpa não é minha se sua mãe acha que o Holocausto é real”, respondeu ele. “Tá, mas não discute com a minha mãe, senão você nunca volta para minha casa, ok?” “O quê? Eu discuti com sua mãe comunista? Eu nunca faria isso.” Nas trocas de mensagens, o adolescente também defende outros ditadores (Augusto Pinochet e Benito Mussolini, entre eles) e mostra-se admirador do presidente Donald Trump e do deputado Jair Bolsonaro, a quem chama de “futuro presidente”.
OS DOIS MENINOS MORTOS – João Vítor (à esq.) era um dos melhores amigos do matador. João Pedro foi o primeiro a ser atingido (//Reprodução)
O menino tinha boa relação em casa, apesar da personalidade sisuda do pai, sempre muito rígido com os dois filhos — o de 14 anos e um mais novo, de 8. Mesmo morando perto da escola, o major Malaquias fazia questão de levá-los diariamente ao colégio e buscá-los. Até que, no começo do ano, o mais velho pediu para começar a voltar sozinho para casa. Queria parecer independente. Seu momento de maior stress em casa aconteceu no fim de 2016, quando recebeu uma forte bronca por ter ficado até de madrugada no videogame com o irmão pequeno. Como reação, pegou uma lâmina de barbear e fez cortes no próprio braço. A atitude não inspirou preocupação na família. O bullying tampouco causara inquietação. O pai revelou à polícia que seu filho jamais comentara ter sofrido com piadas na escola.
O adolescente sonhava em ser técnico de informática, programador ou médico. Gostava de ler e cumpria à risca o horário dedicado aos estudos. O delegado Gonzaga Júnior disse acreditar que o garoto sofre de alguma psicopatia, embora ninguém — nem os pais, nem professores, nem a psicóloga — tenha detectado algum sinal nesse sentido. Um perito médico da Polícia Civil já foi recrutado para traçar o perfil psicológico do menino. “Não foi o bullying propriamente que gerou tudo isso, e sim um conjunto de fatores e situações de criação, personalidade e experiências que culminaram no homicídio”, diz o delegado. Com a polícia o atirador foi claro: estava cansado de ser “amolado” pelos garotos de sua classe e resolveu matar.
Magro e alto, ele havia espichado nos últimos meses até atingir 1,80 metro. Por isso, não teve dificuldade em pegar a pistola num coldre na parte de cima do armário do quarto dos pais. A arma pertencia à mãe, que a guardava em casa por estar de licença. A pistola, de uso exclusivo da PM, não é tão fácil de ser manuseada como um revólver, que exige apenas o carregamento e o aperto do gatilho. O modelo .40 precisa ser destravado. O chamado “golpe de segurança”, na parte superior da arma, tem de ser desativado para que abra fogo. O pai garantiu à polícia que nunca ensinou o filho a atirar e que ele nunca havia demonstrado interesse por armas. No depoimento, o adolescente relatou ter aprendido tudo em tutoriais na internet.
O promotor Cassio Sousa Lima pediu à Justiça a internação preliminar do assassino por 45 dias dada a sua “periculosidade presumida”. Ele é acusado de infração análoga (por se tratar de menor) a dois homicídios consumados e quatro tentativas. Se for condenado, poderá ir para uma casa de internação até completar 18 anos. Depois, ficará livre.
João Pedro e João Vitor morreram. Isadora pode ficar paraplégica. Hyago e Lara já estão em casa. Marcela se recupera no hospital. Todos tiveram sonhos interrompidos. VEJA procurou a família do criminoso. A sargento Wanderlúcia teve alta na terça-feira, depois de cinco dias internada em estado de choque. Malaquias não quer falar. “A dor é muito grande”, afirmou. Aos pais, o adolescente disse estar arrependido.