A ONU estabelece um padrão de abastecimento de água que considera adequado: qualquer fonte que possa fornecer 20 litros por pessoa por dia a uma distância menor que um quilômetro. A estimativa da organização é que um bilhão de pessoas não estejam dentro desse padrão: ou tem menos água que o necessário ou se encontra a uma distância muito maior, segundo o Estadão. A falta de água potável impacta diretamente sobre a saúde da população: além do perigo da desidratação, fontes impuras ou contaminadas trazem doenças e epidemias às comunidades. Sem água, é impossível ter uma agricultura apropriada ou qualquer tipo de atividade industrial.
O cenário, que parece distante da realidade de países mais desenvolvidos, pode se agravar com as mudanças climáticas. Com o potencial de alterar os regimes e ciclos de chuva, regiões que antes não se preocupavam com esse abastecimento podem enfrentar escassez e estresse hídrico. Isso inclui o Brasil, um país que aparece como privilegiado nessa discussão por possuir 12% do volume mundial de água doce. Vale lembrar que regiões como o Nordeste têm graves problemas relacionados ao abastecimento e, mesmo áreas com chuvas regulares, como o Sudeste, enfrentaram graves problemas de abastecimento no ano de 2015.
A preocupação com a questão hídrica tem impulsionado o uso de tecnologias para aprimorar a qualidade e aumentar a possibilidade de fontes hídricas. A discussão sobre as possibilidades dessas inovações foi tema do congresso mundial do International Desalination Association (IDA), principal organização global dedicada ao avanço e tecnologia da dessalinização e reutilização de água. O evento aconteceu entre os dias 15 e 20 de outubro em São Paulo e fomentou a discussão sobre escassez hídrica na América Latina com empresas, instituições e governos de diferentes países.
Dessalinização
O processo de dessalinização é um dos mais usados em países que sofrem com o abastecimento de água potável, como Austrália, Israel, Chile e Espanha. Segundo dados da organização de 2015, são mais de 18 mil plantas de dessalinização no mundo e mais de 300 milhões de pessoas dependem desse tratamento para usar água em suas necessidades diárias. No Brasil, a primeira planta de dessalinização foi instalada na década de 80 em Uaua, no interior da Bahia.
Desde então, algumas plantas foram instaladas no semiárido nordestino e no norte de Minas Gerais. Como lembra Claudio Ritty Itaborahy, especialista em recursos hídricos da Agência Nacional das Águas (ANA), grande parte desse equipamento estava desativada por falta de manutenção. O Ministério do Meio Ambiente atua nessas regiões desde 2003 com o Programa de Água Doce, para implantar ou recuperar equipamentos em Alagoas, Bahia, Ceará, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco e mais recentemente no Maranhão.
“Além da primordial disponibilização de água potável nas comunidades dispersas, estes sistemas são associados a sistemas produtivos locais sustentáveis. Neles realiza-se o aproveitamento dos concentrados da dessalinização na aquicultura, na irrigação de plantas halófitas, que absorvem sal, além da construção de leitos de evaporação para separação e produção de sal, entre outros usos”, explicou. Para a agência, o Brasil tem potencial nos sistemas de dessalinização em duas situações: em sistemas de pequeno porte, em pequenas comunidades para garantir água potável, e também sistemas maiores, em cidades situadas no litoral para suprir a demanda nesses locais.
Segundo Renato Ramos, diretor comercial da Dow Water & Process Solutions, a dessalinização é usada por indústrias há muitos anos – com a captação de água de rios e lagos, para alguns processos industriais, é necessário remover a salinidade (mesmo que baixa, se comparada a dos oceanos). Um exemplo é o Aquapolo, projeto que fornece água de reuso ao polo petroquímico do ABC Paulista. As 800 membranas de osmose reversa da Dow removem esses sais e melhoram em 40% a água tratada, gerando também uma economia de 30% no gasto energético. Essa tecnologia é trabalhada desde a década de 80, e nas últimas décadas desenvolvida para reduzir custos e consumo de energia.
A dessalinização de água do mar ainda é muito restrita no país, segundo Ramos. Os principais motivos para isso são o alto custo operacional e demanda de energia. “Ainda não acontece da forma que poderia estar acontecendo devido ao tamanho da costa brasileira. A dessalinização de água do mar tem um custo energético maior porque tem uma quantidade de sais maior do que do poço. As pessoas ainda veem como um custo mais elevado, e é mesmo um custo mais elevado do que tratar água doce. O que é importante entender é que a dessalinização da água do mar tem que vir como uma solução onde você não tem outras fontes de água para poder dar água pra população”, relata.
Como lembra Claudio Ritty, há riscos ambientais envolvidos caso o processo seja feito de forma leviana. Caso a demanda de energia seja suprida por fontes poluentes, como termelétricas, o processo pode trazer impactos em termos de emissão de gases de efeito estufa. Além disso, a captação de água pode sugar criaturas marinhas pequenas, como plâncton e larvas. Outro problema é o descarte do concentrado de sais: nos solos, pode degradar e até agravar processos de desertificação. Nas águas, pode aumentar a salinidade e temperatura da água, o que tem efeitos diretos na fauna e flora do local.
Renato Ramos destaca a importância de ter o conhecimento desses riscos para minimizar os impactos. “Por exemplo, na dessalinização, quando você pega água do mar, tem que ter duas correntes de água subsidiadas, que é uma água que vem poucos sais e outra que tem muito mais sais que a própria água do mar. Essa água tem que voltar para o mar. Mas tem hoje existem processo de dissolução dessa água que volta para o mar de uma maneira cadenciada, justamente para evitar o impacto na vida marinha ao redor dessa instalação. Se você não faz esse estudo, não trabalha com dissolução, e joga de uma vez esse concentrado no mar, você vai ter um impacto ambiental”, explica.
O executivo da Dow foi um dos responsáveis por trazer o IDA ao Brasil. Ele avaliou que o congresso geralmente traz reflexões importantes aos países que sediam o evento. Um exemplo citado por Ramos foi a mudança radical que aconteceu no sul da Espanha. O país recebeu o IDA em 1997, enquanto o país enfrentava um grave estresse hídrico na região sul. “A partir desse congresso, o governo espanhol percebeu que tinha alternativas relacionadas à questão hídrica. A dessalinização e reuso que poderiam ser utilizados. O governo começou a investir em planos de dessalinização e hoje a região é extremamente atrativa do ponto de vista turístico, agrícola e industrial. A Espanha é uma das maiores potências de conhecimento em dessalinização”, reflete.
Reuso e ultrafiltração
Outro ponto largamente abordado por especialistas em gestão hídrica é a questão do reuso ou captação de água fluvial. Claudio Ritty aponta que uma gestão hídrica mais eficiente nas indústrias e por todos os usuários da rede é uma questão essencial. O debate vem ganhando destaque principalmente entre as indústrias nacionais que usam largamente o recurso em seus processos produtivos. “A soma desses esforços é muito representativa, uma vez que a retirada de água dos corpos hídricos superficiais pelo setor industrial chega a 15% do total retirado no Brasil. A melhoria da gestão hídrica pelos setores usuários deve ser fundamentada na mudança de hábito das pessoas envolvidas e da adoção de tecnologias e processos que visem à conservação da água em quantidade e qualidade. No caso específico das indústrias, deve-se procurar reduzir a captação de recursos hídricos e gerar menores volumes de efluentes, com ampliação do reuso e da utilização de outras fontes alternativas de água”, aconselha.
A Dow, desde 2006, desenvolve membranas de ultrafiltração – com um poro maior do que as de osmose reversa, conseguem realizar uma pré-filtração da água, retirando as partículas maiores e cerca de 99% dos contaminantes, incluindo vírus e bactérias. Isso faz o sistema de tratamento ser mais eficiente e viável economicamente, produzindo também uma água com mais qualidade, que pode ser usada tanto na indústria como no abastecimento para uso doméstico. “antigamente o que a gente tinha eram os sistemas convencionais, aquilo que a gente aprende na escola: decantação, fabulação, filtração. Só que as águas não são mais convencionais, elas tem novos tipos de contaminantes que precisam de novas tecnologias”, aponta Ramos. A ultrafiltração foi utilizada durante a crise hídrica em Brasília na Lagoa Paranoá, que nunca havia sido utilizada como fonte de abastecimento para a população, e também no município de Bertioga (SP).