Conversei com Cláudio Henrique de Castro, analista de controle do Tribunal de Contas do Paraná e especialista em direito administrativo e eleitoral. Ele é categórico: isso é totalmente ilegal. “O prefeito está cometendo um rosário de crimes”, disse.
Castro diz que só é possível distribuir recursos para caridade em casos muito específicos, como quando um município passa por uma situação de calamidade pública, por exemplo. Ainda assim, a doação precisa ser aprovada pelo legislativo. “Como está sendo feito, estão caracterizados crimes eleitoral, de improbidade administrativa e fiscal, por distribuir recursos públicos para interesses particulares”, disse.
Como estamos em período eleitoral, diz Castro, Carlinhos pode até ser afastado da prefeitura e Doda ter a campanha suspensa por ter sido beneficiado pelos favores concedidos pelo irmão. Os dois ainda podem ficar inelegíveis e serem obrigados a devolver o dinheiro.
Queimadas, segundo Carlinhos, foi batizada assim em função do clima semiárido, onde o solo é seco e duro e as plantações sofrem. Ela é conhecida como “cidade das pedras” pela formação rochosa da serra do Bodopitá, com picos que passam de mil metros de altura. A região tem pelo menos 12 sítios arqueológicos – mal-conservados e vandalizados.
Carlinhos nos contou essas informações enquanto dirigia a sua caminhonete até o centro da cidade. Ele fechou a janela para deixar a poeira do lado de fora e foi apontando na paisagem as propriedades da família. São terrenos médios (“minifúndios”, como diz), que parecem inutilizados. Ele buzina e cumprimenta todos que aparecem na estrada.
Seguimos com o prefeito até o Master, seu supermercado, o maior da cidade, na avenida principal. Em um dos corredores, uma mulher lhe pede R$ 100. Ele a orienta a procurar a assistência social da prefeitura e dizer que ele a mandou.
A sala de Carlinhos, assim como as de Doda e Socorro em seus respectivos negócios, ficam em um plano elevado e são envidraçadas, de modo a permitir uma visão de cima – e também para serem vistos. O espaço foi decorado com troféus de vaquejada e garrafas de bebida. A sala de Socorro tem fotos do pai, seu ídolo. Já a de Doda, no supermercado, é tratada como “gabinete”, onde recebe aliados.
No mesmo terreno do Master, há uma unidade do Subway e uma loja de artesanato, ambas de Carlinhos. Atravessando a rua, enxergo outro grande supermercado, o Sacolão. Este é de Doda. Alguns metros adiante, fica a loja de material de construção de Socorro.
Nenhum dos estabelecimentos, porém, está em nome dos verdadeiros donos.
Os bens foram distribuídos entre funcionários da prefeitura e outros membros da família. O Sacolão está registrado no nome da esposa de Doda, Delúsia, e de uma cozinheira que recebe R$ 954 por mês, além do Bolsa Família.
A loja de materiais de construção pertence oficialmente ao filho de Socorro, Ricardo, e a um vigia que também recebe menos de R$ 1 mil por mês. No papel, o Master é da mãe deles, Dadá, e do irmão mais velho, Roberto Carlos, que teve uma doença quando criança e não atua nos negócios da família.
Justiça amiga
Carlinhos chegou a ser alvo de uma ação do Ministério Público Federal por usar como laranja uma mulher que não sabia escrever o próprio nome. Segundo a denúncia, Luzinete Pereira de Lima ficou sabendo na Caixa Econômica Federal que era uma das proprietárias da Correl – Comercial Rego, que consta na Receita como uma loja de alimentos em Campina Grande. Hoje a empresa está no nome de Carlinhos.
O Tribunal de Contas da Paraíba recebeu, em 2012, uma denúncia sobre o suposto uso de empresas fictícias da família em contratos da prefeitura na primeira gestão de Carlinhos como prefeito.
Os fiscais foram ao endereço das empresas contratadas para abastecimento de água por carro pipa e coleta de lixo, que estavam fechadas em horário comercial. Com o avanço da investigação, concluíram que as firmas eram inexistentes, para “evidente lavagem de dinheiro”. O Tribunal condenou o prefeito a pagar R$ 3,4 milhões e enviou as informações para o Ministério Público e a Polícia Federal. Não há indicativo, porém, de que as investigações tenham andado e tampouco há outras investigações na delegacia e na promotoria de Queimadas.
Há 21 anos na cidade, o mais próximo que o promotor local, Marcio de Albuquerque, chegou de incomodar os Rêgo – com quem mantém relações cordiais – foi em um caso de homicídio. Em 2012, um colaborador da campanha de Carlinhos, Sebastian Coutinho, teria sido morto como queima de arquivo, de acordo com a mãe do rapaz. Ela entregou fotos de Carlinhos junto com um dos suspeitos do crime mas, segundo o promotor, elas não foram suficientes para provar a participação do político.
Cocaína e paranoia
O emaranhado de propriedades suspeitas é denunciado por dentro do clã. José Ricardo Rêgo, conhecido como Preá, é irmão de Doda e Carlinhos, mas brigou com a família no começo do ano e se aliou ao opositor, o também candidato a deputado estadual Jacó Maciel, do Avante.
Viciado em cocaína (a que se refere como “vitamina do diabo”), Preá foi internado à força pelos irmãos em 2015. Enquanto tomava remédios pesados, diz que lhe forçaram a assinar uma procuração para passar os negócios que administrava para o nome deles. O assunto é confirmado pelos irmãos, que dizem que Preá não tinha condições de tocar os empreendimentos.
Na cidade, Preá já foi acusado de ser um traficante envolvido em explosões de caixas eletrônicos – o que ele nega. Ele diz que a desconfiança surgiu porque é dono de duas pedreiras e tem dinamite à disposição. “Eu tenho a minha ética, não devo a ninguém”, afirma.
Para me encontrar com Preá, fui recebida por um carro novo, sem placas, que estacionou em frente à promotoria. “Entrem no carro”, disse um homem. Nós hesitamos. O homem insistiu: “Vocês não querem conhecer o nosso amigo?”. O motorista e o outro homem que estava no banco do passageiro eram aliados de Preá. Mais tarde compreendi que, mesmo sem cargo público, o irmão tem o mesmo prestígio de Doda e Carlinhos na cidade. As pessoas o procuram quando precisam de um médico, uma viagem ou dinheiro.
Eles nos levaram até a pedreira Britamix, em Massaranduba, a cerca de 40 quilômetros de Queimadas. Preá estava com uma camisa laranja suja de poeira com o logotipo da construtora Camargo Corrêa. Conversamos com ele em sua sala, um contêiner improvisado de onde vê o trabalho na pedreira. Várias vezes ele nos mostrou as mãos calejadas, justificando que trabalha pesado. Ele pediu licença, durante a entrevista, para cheirar cocaína do lado de fora da sala.
Preá vive com medo de sofrer uma emboscada armada pelos irmãos. Em alguns momentos da conversa, fazia movimentos demonstrando que estava armado. Quando falava sobre assuntos sensíveis, abaixava o tom de voz. Achava que estava sendo grampeado.
Estupro e fidelidade
Em 2012, cinco mulheres foram estupradas na cidade, episódio que ficou conhecido nacionalmente como a Barbárie de Queimadas. Duas vítimas morreram. Um sobrinho dos Rêgo, filho fora do casamento de Tião, participou do crime. Ele cumpre pena no regime semiaberto, em João Pessoa. Doda paga o aluguel de um apartamento para ele passar o dia.
Conversamos com Fátima Monteiro, a mãe de uma das meninas mortas. No sofá de sua sala, ela nos mostrou um saco de fotos da filha. Chorou, disse que engordou 30 quilos e passou cinco anos fora de casa por causa do ocorrido – a casa onde mora fica a cerca de 200 metros do local do estupro.
Fátima disse que sua família sempre foi próxima dos Tião e que, hoje, vários parentes ocupam cargos na prefeitura. “A gente tem que saber separar as coisas, eles não tiveram culpa. Foi muito sofrido. Mas eles nos ajudaram com trabalho e médico”, disse.
Outros moradores relataram situações parecidas. Boa parte tem negócios com a família, receberam emprego ou são afilhados e aprovam a gestão dos Rêgo.
Fogos de artifício e vaquejada
Participei de um comício de Doda, em Barracão, uma comunidade rural perto de Queimadas. O show tinha telão, chuva de papel picado e explosão de fogos de artifício. Caixas de som bombavam o hit da campanha: “Doda, Doda… É Doda na cabeça”. Um homem se animou e começou a dançar com uma latinha de bebida na mão. Foi retirado por um dos seguranças que guardavam o local.
Um dos funcionários da rádio comunitária, Josias, era o responsável por trazer público para os comícios. Ele disse que enviava ônibus para buscar eleitores em regiões mais afastadas da área rural. Perguntei se só com isso o povo se animava a ir a um comício numa noite de sábado. Ele respondeu, rindo, que tinha mais um “incentivo”. Perguntei qual. Ele respondeu com gestos que não entendi. Insisti na pergunta. “Um incentivo, um refrigerante, um lanche, sabe?”, disse.
As pessoas recebiam adesivos com o rosto e o número de urna de Doda assim que chegavam. Ambulantes com luzes neon vendiam cerveja, energético e “capeta” (um tipo de batida). A maioria dos homens já estava embriagada quando o deputado finalmente chegou, perto das 22h. Eles estavam lá desde as 19h.
O espaço estava lotado com apoiadores vestidos de vermelho, a cor que identifica o grupo político dos “Tião”. Os adversários são amarelos, e o embate entre as cores é a tônica da disputa eleitoral há décadas, independente das tonalidades dos partidos envolvidos.
Quem me explicou isso foi Arnaldo Dias, dono da agência de publicidade responsável pelo material de campanha e pela propaganda dos negócios da família há 10 anos. Foi ele quem me buscou no aeroporto de Campina Grande, apesar de minha resistência em aceitar o favor. Disse que, além de publicitário, era também o “faz-tudo” dos Rêgo.
A agência de Arnaldo edita uma revista temática sobre vaquejada, uma tradição nordestina que consiste em vaqueiros montados a cavalo tentando encurralar e derrubar um boi, laçando-o pelo rabo. A prática chegou a ser considerada ilegal por imputar sofrimento aos animais.
A vaquejada é a principal bandeira do mandato de Doda. Ele foi autor de um projeto que regulamenta a prática na Paraíba. O deputado não é praticante, mas o irmão, Carlinhos, sim.
Coronéis do carro pipa
A operação da família é muito semelhante aos moldes do coronelismo, comum no Nordeste no início do século 20, mas adaptado a uma nova versão. Antigamente, o coronel exercia poder em uma localidade por meio da troca de favores, concedidos apenas a quem lhe fosse fiel. As principais moedas de troca eram, como no caso dos Tião, a água, o leite e o apadrinhamento.
“Era de costume as pessoas carentes e os mais necessitados atribuírem seus filhos a uma dessas famílias tradicionais, visto que além da ‘proteção’ e ‘segurança’, o leite já estava garantido para a criança”, escreveu José Marciano Monteiro em sua dissertação de mestrado, de 2009, sobre o poder da família Ernesto-Rêgo em Queimadas.
Hoje professor da Universidade Federal de Campina Grande, Monteiro continuou o estudo no doutorado. No livro “A política como negócio de família”, traçou a árvore genealógica dos ‘Tião’ e encontrou semelhanças no modo de agir deles e de outras famílias poderosas do interior do país.
Estabeleceu um paralelo: o poder das famílias se retroalimenta. Elas são donas do poder poder político de um local e com isso saem na frente para conquistar o poder econômico. E vice-versa. A lógica é igual à da bolacha Tostines: não se sabe se o poder econômico garante o sucesso nas urnas ou se o sucesso nas urnas é que faz os negócios crescerem.
“São verdadeiras dinastias políticas que se revezam no poder e dominam o Estado, recortando o território por meio de ‘nomes de família’”, escreveu. A renovação na política nestes locais, segundo Monteiro, é apenas geracional.
A diferença entre as situações encontradas hoje e o coronelismo no passado é que o poder agora, ao menos aparentemente, precisa passar por outra instâncias. “Antes o coronel determinava quem ia receber água de seu açude. Agora, os vereadores controlam a distribuição por meio de carros pipa”, citou como exemplo.
‘Pobres, graças a Deus’
Tião do Rêgo era descendente de uma família tradicional da região do agreste pernambucano e paraibano. Sua linhagem é a mesma que deu origem a uma série de conhecidos da política brasileira, como o ex-deputado Vital do Rêgo e o filho de mesmo nome, ministro do Tribunal de Contas da União, e o deputado federal e atual candidato a senador Veneziano Vital, do PSB.
O pai, contam os irmãos, não se importava com dinheiro e deixava a família passar necessidade. Todos trabalharam desde a infância, vendendo peixe, leite e fazendo pequenos serviços (Doda já levou uma repreensãopública por elogiar uma criança em condição de trabalho infantil).
“O pai não olhava para a família. Mas ele é o nosso orgulho”, diz Socorro, que aos 13 anos trabalhou como manicure enquanto o pai era prefeito. Seu escritório é lotado de pôsteres e fotos de Tião. Quem entra logo vê um grande busto de bronze do pai, feito em Campina Grande.
“Fomos pobres, graças a Deus. Por isso hoje somos viciados em trabalho”, continua Socorro. O “vício em trabalho” é o bordão repetido por todos os filhos. À exceção de Carlinhos, que é filiado ao PSB, os outros são do PTB, o Partido Trabalhista Brasileiro, assim como o pai.
Doda diz que esta deve ser a sua última eleição, pois quer se aposentar. Ele tem 51 anos. “Eu estou deixando de viver por causa da política. Tenho um apartamento em João Pessoa e não vou pra praia há mais de um ano.”
O deputado também acredita que o sucesso da família com os negócios foi o motivo de Tião ter perdido pela primeira vez uma eleição (a última de sua vida), para vereador. “Quando a gente começou a ter as coisas, as pessoas não aceitavam mais que se negasse algum pedido”, disse.
Tião proibia os filhos de entrarem na política – achava que eles não aguentariam o tranco. Em 2008, dois anos depois de sua morte, vítima de um câncer de pulmão aos 66 anos, Carlinhos se elegeu prefeito. Precisava continuar o legado do pai.
Socorro diz que os filhos Mariana e Ricardo também querem entrar para a política. “Tento falar para eles desistirem dessa ideia, mas acho que não vai ter jeito”, disse, desanimada. Têm tudo para dar certo.
*Chegamos ao nome de Doda de Tião por meio de um levantamento feito a pedido do Intercept na base de dados do Tribunal Superior Eleitoral pela Open Knowledge, organização sem fins lucrativos que construiu a plataforma Perfil Político. Foram considerados políticos de cidades de até 100 mil habitantes eleitos em 2014 e que assumiram em janeiro de 2015 cujo patrimônio era superior à média geral dos candidatos declararam ao TSE, que foi de R$ 388.826,86 em 2014.