A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, recorreu nesta sexta-feira (3) da decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes que arquivou, sem prévio pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), inquérito que investiga o senador Aécio Neves (PSDB/MG). Aberto em maio de 2016, o procedimento apura suspeitas de corrupção e lavagem de dinheiro relacionadas à Furnas Centrais Elétricas. O inquérito foi arquivado em junho, após pedido do senador, sob o argumento de que o processo se alongou sem conclusões que justificassem a continuidade das investigações, informa publicação do MPF.
No agravo regimental, a PGR alerta que o ministro trancou o inquérito sem considerar as novas informações anexadas ao processo e, que dão conta de suspeitas de evasão de divisas de valores que teriam sido recebidos pelo senador no esquema de propinas instalado na Diretoria de Engenharia de Furnas. As informações são resultado de um procedimento de cooperação internacional fechado com o Principado em agosto de 2017. O pedido teve como base informações apreendidas na Operação Norbert, no Rio de Janeiro. Documentos encontrados na casa de dois doleiros revelaram que várias pessoas usaram mecanismos chamados de interposição de personalidade jurídica”, para manter e ocultar valores no exterior, inclusive na Suíça e no Principado de Liechtenstein, na Europa. Entre esses nome estava o da mãe do senador, Inês Maria Neves, relacionado à titularidade da “Bogart and Taylor Foundation”.
Além do senador, as informações bancárias, obtidas por meio de cooperação internacional com o Principado de Liechtenstein, referem-se a outros investigados como Dimas Toledo, Inês Neves e Andrea Neves e às pessoas jurídicas Boca da Serra e Bogart & Taylor Foundation. Os dados foram juntados ao inquérito pouco antes da decisão de arquivamento e, – por falta de tempo – ainda não tinham sido analisadas pelos investigadores. “Não há como arquivar a apuração sem analisar antes o material recebido do exterior. Seria uma irresponsabilidade”, alerta a PGR, reforçando que a cooperação internacional com o Principado de Liechtenstein abriu uma nova linha investigativa efetiva e que não foi adotada pela Polícia Federal, “trazendo informações relevantes e até então inéditas nos autos”.
Delatores – Além dos novos elementos, que podem abrir outras linhas de investigação, depoimentos de delatores explicam como o esquema funcionava. Segundo Alberto Yousseff, durante o governo do PSDB, de 1994 a 2001, tanto o PP quanto o PSDB: eram responsáveis, cada um, por uma diretoria de Furnas. Informações relatadas por Youssef dão conta que, enquanto o ex-deputado José Janene operava o esquema pelo PP, a irmã de Aécio, Andrea Neves, recolhia os valores referentes ao PSDB. O esquema era sustentado pelo pagamento de vantagens indevidas para servidores públicos e políticos no âmbito da estatal por empresas interessadas em contratar.
Já Delcídio do Amaral informou, em colaboração, “que não há dúvidas que Furnas foi usada sistematicamente para repassar valores para partidos”, entre eles PP, PSDB e PT, principalmente por meio do Diretor de Engenharia Dimas Toledo, apadrinhado de Aécio e Janene. Delcídio ainda cita a existência de uma fundação sediada em um paraíso fiscal da qual seria beneficiário Aécio Neves.Também consta do inquérito, depoimento do lobista Fernando Antônio Guimarães Hourneaux De Moura em que ele confirma o esquema de distribuição de vantagens ilícitas no âmbito de Furnas com participação de Dimas Toledo, diretor indicado por Aécio Neves.
Raquel Dodge relata que, no curso da investigação foi possível estabelecer conexões entre o relato dos colaboradores e outras apurações sobre o pagamento de vantagem indevida decorrente de contratos de Furnas. Entre esses fatos, cita denúncia apresentada pelo MPF no Rio de Janeiro à Justiça Federal contra Dimas Toledo, em 2012. Ele e outras pessoas foram acusadas de participar de um esquema de arrecadação de vantagens indevidas em Furnas, que funcionava de forma muito semelhante ao relatado pelos colaboradores Alberto Youssef e Delcídio do Amaral. “Está-se diante, portanto, de investigação em que constam elementos probatórios que demonstram a existência de investigação de fatos típicos, com indícios de materialidade e autoria delitivas”, reforça a PGR.
Atribuição para arquivamento – Na peça, a PGR questiona, ainda, a atribuição do Supremo Tribunal Federal para arquivar investigações sem pedido prévio do Ministério Público. Raquel Dodge frisa que, além da Constituição Federal que reserva a diferentes órgãos as funções de defender, acusar e julgar, o Brasil está vinculado a compromissos constitucionais e internacionais “que compelem o Estado a separar as funções de investigar e julgar, como garantia de que todo réu terá direito a um julgador imparcial”. É o art. 129, I, da CF que estabelece ao Ministério Público, com exclusividade, a titularidade da ação penal, ou seja, a função de acusar, não cabendo a nenhum outro órgão atuar nesse sentido.
Raquel Dodge lembra que o plenário do STF já teve oportunidade de se manifestar contra a possibilidade de o Poder Judiciário determinar o arquivamento de inquérito policial sem prévia provocação ou manifestação do Ministério Público. Em 2014, a maioria dos ministros afastou essa possibilidade, mesmo existindo previsão no Regimento Interno da Corte. O documento reproduz manifestação do então ministro Joaquim Barbosa, na ocasião do julgamento. “Isso é uma subversão absoluta de tudo o que existe no Brasil em matéria de Processo Penal. O relator, a seu talante, arquivar um inquérito. É o absurdo dos absurdos”, definiu Barbosa ao votar contra a medida.
O trancamento de investigações sem manifestação do MP é previsto apenas em situações excepcionais, conforme regimento da Corte. Nesse sentido, Raquel Dodge esclarece que o Poder Judiciário deve atuar apenas como “juiz de garantias”, responsável por evitar ilegalidades ou arbitrariedades que transformem a investigação penal em ferramenta para constranger investigado, o que, segundo a PGR, não é o caso. “Fora dessas hipóteses extremas, a interveniência judicial em investigações penais, em que magistrados, substituindo o juízo de conveniência e oportunidade investigativas do Ministério Público, promovem denúncias ou arquivamentos de ofício, implica em grave subversão do sistema acusatório, bem como de princípios que lhe são ligados, como o da imparcialidade, inércia e isonomia”, enfatiza trecho do parecer.
Quanto à duração da investigação – dois anos e três meses – , considerada “demasiadamente longa” pelo ministro, Raquel Dodge observa que a investigação possui duração absolutamente compatível e razoável diante do seu porte e complexidade. Além disso, é compatível com a média de duração de inquéritos em trâmite no Supremo Tribunal Federal, que, segundo recente pesquisa feita pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) no projeto “Supremo em números” é de 797 dias.
Como os fatos são referentes aos períodos em que Aécio Neves exerceu os cargos de deputado federal (1997 – 2002) e de governador do Estado de Minas Gerais (2003 – 2005), a PGR pede que o inquérito seja remetido á Justiça Federal do Rio do Janeiro para continuidade das investigações.
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