Os impactos da implantação de parques eólicos e fotovoltaicos em assentamentos da reforma agrária e comunidades quilombolas é uma preocupação crescente na região Nordeste. Este foi o tema de evento promovido pelo Ministério Público Federal na Paraíba (MPF/PB), na última semana do mês de novembro, em João Pessoa. A iniciativa reuniu cerca de 50 servidores de órgãos públicos federais e estaduais, além de especialistas e representantes de movimentos sociais.
O foco principal das discussões do “Curso de Capacitação em Energias Renováveis” foi a identificação e o enfrentamento de problemas causados pela instalação dessas usinas em várias áreas do estado. Outro objetivo foi a busca de soluções que respeitem os direitos dos assentados e minimizem os impactos sociais e econômicos negativos das usinas eólicas e fotovoltaicas nas comunidades.
Servidores das divisões de Governança da Terra, Desenvolvimento Sustentável, Obtenção de Terras e Territórios Quilombolas do Incra na Paraíba (Incra/PB) e o superintendente regional da autarquia, Antônio Barbosa Filho, participaram dos debates, que aconteceram no auditório do MPF/PB.
O evento contou ainda com a presença de representantes da Defensoria Pública da União no estado (DPU/PB), da Superintendência de Administração do Meio Ambiente (Sudema), da Defensoria Pública do Estado da Paraíba (DPE/PB), da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), da AS-PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia, de assentados da reforma agrária e de quilombolas.
Entre as principais questões discutidas no evento, destacaram-se os direitos territoriais, as disputas pelo uso da terra devido à falta de consulta e diálogo prévio com as comunidades afetadas. Foram abordados ainda os danos estruturais em moradias e cisternas, os impactos nos ecossistemas locais, no modo de vida das comunidades e na saúde de pessoas, animais e plantas.
O chefe da Divisão de Governança da Terra do Incra/PB, André Ricardo de Melo, apresentou mapas digitais que mostram a distribuição dos “corredores de ventos” nos assentamentos rurais, das comunidades quilombolas e das áreas onde já foram instalados empreendimentos para geração de energia– áreas geográficas onde o fluxo de ventos é particularmente forte e constante. Os corredores de ventos constituem localizações ideais para a geração de energia eólica.
Impactos e dificuldades
No entanto, os participantes do evento ressaltaram que, embora os parques eólicos possam trazer benefícios econômicos e energéticos ao país, eles têm gerado dificuldades para as comunidades assentadas e quilombolas. Entre os problemas relatados estão a restrição de áreas para cultivo e criação de animais, o que afeta a segurança alimentar das famílias.
De acordo com a professora doutora Mariana Traldi, do departamento de Geografia do Campus do IFSP em Hortolândia, estudiosa de temas relacionados à produção de energia renováveis em comunidades rurais, está havendo uma “privatização dos ventos” para a produção de energia eólica por empresas multinacionais em áreas rurais brasileiras, principalmente em assentamentos da reforma agrária e comunidades quilombolas.
Ela explicou que os contratos firmados entre as empresas e os agricultores têm cláusulas abusivas, prazos de vigências que ultrapassam 40 anos e multas milionárias em caso de desistência. “Os agricultores que assinam esses contratos perdem o controle de suas terras por toda a vida”, resumiu Mariana Traldi.
Segundo a professora, falta legislação específica e regulamentação da atuação das empresas geradoras de energia, bem como apoio jurídico às famílias assediadas por elas. “É uma relação de exploração e um processo contrário à reforma agrária, com reconcentração de terras. É a captura da renda da terra por grandes empresas”, concluiu.
Dom Quixote
Para o professor de Direito da UFPB Fernando Joaquim Maia, integrante do Projeto Dom Quixote, que promove o fortalecimento do conhecimento e da autonomia das comunidades diante das mudanças trazidas pela transição energética, o Estado precisa intervir nessas relações contratuais.
já o procurador da República José Godoy, membro do MPF/PB, afirmou que os órgãos ambientais estão sendo enganados pelas empresas para acreditarem que a implantação de empreendimentos de produção de energias renováveis tem apenas benefícios. “Está acontecendo um embuste”, disse.
O defensor público federal Edson Júlio de Andrade alertou para problemas previdenciários futuros que podem afetar agricultores que arrendaram suas terras para empresas geradoras de energias. “No futuro, pode haver uma geração de agricultores sem possibilidade de se aposentar porque perderam a condição de segurado especial da Previdência Social”, afirmou.
Andrade ainda destacou os impactos na sucessão rural nas áreas exploradas pelas empresas geradoras de energia, ou seja, na transferência da gestão das atividades agrícolas ou pecuárias de uma geração para outra.
Famílias prejudicadas
O agricultor Marcos Elói Barbosa, do assentamento José Antônio Eufrouzino, em Campina Grande, a cerca de 120 quilômetros de João Pessoa, falou sobre o assédio das empresas produtoras de energia eólica às áreas de reforma agrária da região do Agreste paraibano. “As empresas passaram lá no assentamento e tentaram nos convencer, mas não aceitamos. Assentamentos vizinhos, que assinaram os contratos, agora estão nos pedindo ajuda”, disse, acrescentando que muitos jovens, filhos de assentados, não querem mais ficar nas áreas e pensam em migrar para as periferias das cidades. “Eu quero uma vida digna para meus filhos e netos. Esses campos de energia são ameaças grandes aos agricultores assentados. A cidade vai comer o quê se o campo não plantar? Vai comer energias renováveis?”.
Ednalva Santos, da Comunidade Quilombola Serra do Abreu, localizada nos municípios de Picuí e Nova Palmeira, a aproximadamente 250 quilômetros da capital paraibana, falou sobre os impactos da instalação de geradores de energia eólica na fauna e na flora. “Não somos contra as energias renováveis, mas contra a forma como estes parques de produção estão sendo implantados”, afirmou.
A agricultora Maria do Céu Batista, umas das lideranças da Marcha pela Vida das Mulheres e Pela Agroecologia, do Pólo da Borborema, que reúne 15 sindicatos de trabalhadoras e trabalhadores ruais (STRs), relatou os danos causados a moradias e cisternas em comunidades onde foram implantados parques eólicos.
Propostas de solução
Durante o evento, foram sugeridas medidas para mitigar os impactos desses projetos, como a criação de protocolos mais claros de consulta às comunidades afetadas. Também foram propostas medidas como o fortalecimento da regulamentação para garantir que as famílias assentadas não sejam prejudicadas; a oferta de assessoria técnica para a avaliação dos impactos decorrentes da instalação dos empreendimentos de produção de energia e o incentivo a modelos de compensação que respeitem os direitos dos trabalhadores rurais e das comunidades locais.
A ideia é criar um modelo de desenvolvimento que seja sustentável tanto do ponto de vista econômico quanto social, sem desconsiderar as necessidades e os direitos das populações tradicionais do campo.
Uma das lideranças do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na Paraíba, Dilei Schiochet, defendeu a busca de alternativas de renda para que os agricultores, principalmente os mais jovens, não abandonem os assentamentos impactados pela instalação aerogeradores. “Poderiam ser disponibilizados créditos para que o capital energético não se aproprie de nossos assentamentos. Por que os jovens dos assentamentos não podem, eles mesmos, ganhar dinheiro produzindo energia solar?”