Foro privilegiado – que monstro é esse?
Marcelo Gurjão Aith*
Nas últimas semanas a grande mídia nos inundou do termo “foro privilegiado”. A expressão nos induz a pensar que são benefícios de poucos apaniguados em detrimento da grande massa da população. Em verdade, tal termo não foge muito do senso comum.
Foro privilegiado, que muitos juristas preferem adotar o termo foro por prerrogativa de função, é a prerrogativa conferida pela Constituição Federal a algumas autoridades, em função do cargo que ocupam, de serem julgadas por um colegiado de juízes em matéria criminal. Em tese, tribunais superiores estão menos vulneráveis a pressões externas e podem julgar autoridades com maior independência. Basicamente é isso! O monstro não é tão feio como se afigura.
No entanto, não são tão poucos assim os beneficiados por tal prerrogativa. Segundo levantamento do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado Federal, nada menos do que 38,4 mil autoridades não se submetem a um juiz de primeira instância, mas sim a um Tribunal. Entre elas, por exemplo, 5.570 prefeitos, 10.687 membros de Ministério Público Estadual e 14.882 juízes de primeiro grau.
A Constituição Federal de 1988 estabelecia que estas prerrogativas, por exemplo, nos casos de cargos eletivos, seriam exercidas desde a diplomação. Ou seja, mesmo antes da posse do político eleito, os processos criminais por ventura promovidos contra eles eram diretamente remetidos ao Tribunal, independentemente da data do cometimento ou do tipo do delito atribuído a autoridade. Assim, o prefeito processado por um mero crime de trânsito, teria a competência para processa-lo e julga-lo transferida para o Tribunal de Justiça.
Com efeito, no último dia 3 de maio, o Supremo Tribunal Federal (STF), seguindo o voto do relator, Roberto Barroso, prolatado no julgamento de questão de ordem na Ação Penal (AP) 937, houve uma substancial alteração do entendimento em relação ao alcance do foro privilegiado, atrelado aos casos envolvendo Deputados Federais e Senadores.
Com tal decisão da Corte Suprema, nos casos envolvendo parlamentares federais, o foro por prerrogativa de função somente será aplicado aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas.
Outra considerável alteração estabelecida na decisão do STF está relacionada ao estágio em que se encontra a ação penal. Com a decisão após a audiência de instrução e julgamento, mesmo que o parlamentar deixe a função, permanecerá a competência na Corte Suprema. O mesmo ocorrerá caso o Parlamentar Federal diplomado, que estava sendo julgado em primeira instância, e o processo já se encontrava na fase de alegações finais, permanecerá na vara de origem.
No entanto, o Supremo deixou sem resposta algumas questões, que se não forem solucionadas logo podem resultar em uma enorme insegurança jurídica. Por exemplo, parlamentares federais, que estão no segundo mandato (reeleitos) e estão sendo processando por crimes cometidos no primeiro mandato permanecerão com o foro privilegiado no STF?
Outra questão sem resposta, as demais 36 mil autoridades com prerrogativa de foro estão alcançadas por tal decisão, por exemplo, um promotor de justiça que matou uma namorada será julgado pelo Júri Popular? O Superior Tribunal de Justiça, por decisão do Ministro Luiz Felipe Salomão, na Ação Penal nº 866, determinou a remessa do feito envolvendo o Governador da Paraíba Ricardo Vieira Coutinho para a primeira instância da Comarca de João Pessoa. Imaginemos o que vai ocorrer?
Com certeza muita água irá passar por debaixo da ponte do Supremo.
O que não há dúvida é que a decisão poderá mudar os rumos de processos de parlamentares federais envolvidos na Operação Lava Jato, que hoje tem seu processo correndo a passos de tartaruga no STF. Muitos parlamentares federais que supostamente cometeram crimes quando exerciam funções no estado de origem, terão deslocada a competência para a 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba, ou seja, para o colo de Sergio Moro.
Não podemos esquecer que tramita no Congresso Nacional projeto de emenda constitucional que põe fim ao foro privilegiado, remanescendo apenas para o Presidente da República, Presidente do Senado e da Câmara dos Deputados, nos crimes cometidos no exercício do cargo e em decorrência dele.
Uma questão que merece ser levantada. Estão as varas criminais federais e estaduais preparadas para receber essa enormidade de processos de uma só vez? Tal decisão não estaria gerando um retrocesso na impunidade ao invés de um progresso?
Corremos o risco de uma enxurrada de prescrições, gerando mais impunidade.
Saindo, dessa forma, o tiro pela culatra. Não teria sido melhor deixar o monstro quieto?
*Advogado especialista em Direito Público e Criminal