Quarenta e um deputados federais de 14 estados e do Distrito Federal gastaram, em 2017, ao menos R$ 754 mil em dinheiro público na compra de reportagens em sites, blogs, jornais e revistas influentes nas regiões em que foram eleitos. É o que mostra levantamento realizado para The Intercept Brasil pelo marcozero.info, projeto de jornalismo de dados aplicado à política.
Ao todo, foram analisadas, na seção de transparência do site da Câmara dos Deputados, mais de 2 mil notas fiscais de empresas de comunicação que receberam por serviços de divulgação de atividades dos parlamentares. Desse total, 316 recibos, emitidos por 61 empresas entre 1 de janeiro e 4 de novembro, traziam explicitamente a referência à publicação de matérias, revela reportagem do site The Intercept Brasil.
Muitas dessas reportagens compradas sequer foram identificadas nas publicações como tal. O tema tem passado ao largo da fiscalização na Câmara, que é baseada fundamentalmente em regras que se limitam à questão contábil.
Deputado do MDB lidera gastos
O deputado que mais comprou matérias foi Veneziano Vital do Rêgo (MDB/PB), que gastou R$ 124 mil da cota parlamentar para este fim.
Veneziano, que é irmão do ministro do Tribunal de Contas da União Vital do Rêgo Filho, cumpre seu primeiro mandato. Mas já coleciona acusações diversas, referentes ao período em que foi prefeito de Campina Grande, de 2005 a 2012. O parlamentar responde a sete inquéritos (4017, 4029, 4229, 4122, 3976, 4126 e 4085) no Supremo Tribunal Federal (STF). Outros 23 processos foram arquivados. As acusações vão de improbidade administrativa, peculato e crime de responsabilidade a crimes de licitação e emprego irregular de verbas ou rendas públicas.
A principal empresa contratada por ele na Paraíba, é responsável pela publicação de press releases feitos pela assessoria do deputado em uma série de veículos de comunicação.
A assessoria de Veneziano confirma o propósito dos serviços prestados: “Os veículos recebiam os releases da Assessoria da Comunicação do deputado, com informes de sua atividade parlamentar, para a devida divulgação, dentro da mais absoluta normalidade e legalidade.”
Algumas reportagens são assinadas pela “redação” enaltecem a popularidade do parlamentar, como a que destaca o crescimento do deputado nas redes sociais após a votação da segunda denúncia contra Temer.
Em julho do ano passado, uma matéria exaltou um projeto de Veneziano que beneficiaria “a sociedade como um todo”.
Outras publicações são redigidas em conjunto com a assessoria de comunicação de Veneziano, como a reportagem sobre o arquivamento de inquérito contra o ex-prefeito no STF.
A fiscalização limitada da Câmara
A cota parlamentar como conhecemos hoje foi criada por Michel Temer, enquanto presidente da Câmara em 2009, no Ato da Mesa número 43. Foi um pacote de benefícios que ampliou os direitos dos parlamentares e autorizou gastos em 14 áreas. Entre elas, passagens aéreas, consultoria, locação de imóveis, assinatura de TV a cabo e a divulgação da atividade parlamentar.
Desde então, o documento sofreu diversas mudanças, sob a presidência de Henrique Eduardo Alves, Eduardo Cunha e outros. A fiscalização dos gastos provenientes da cota cabe à Coordenação de Gestão de Cota Parlamentar do Departamento de Finanças, Orçamento e Contabilidade da Câmara e se limita à regularidade fiscal e contábil da documentação, “cabendo ao Deputado responsabilizar-se pela compatibilidade do objeto gasto com a legislação”.
O documento diz ainda que o reembolso dessas despesas “não implica manifestação da Casa quanto à observância de normas eleitorais, nem quanto à tipicidade ou ilicitude” — o que significa que o departamento se exime da responsabilidade de fiscalizar qualquer tipo de irregularidade que não seja fiscal ou contábil.
Outro órgão, o Núcleo de Controle da Cota para o Exercício da Atividade Parlamentar, é responsável por processar a documentação e validar o reembolso, sem questionar o teor dos gastos.
O Regimento Interno da Câmara dos Deputados também é omisso no tocante à questão ética do uso da cota parlamentar. O texto contempla os aspectos contábil, orçamentário, financeiro, operacional e patrimonial dos recursos a que cada deputado tem direito. É preciso, por exemplo, que as empresas contratadas pelos gabinetes estejam em regularidade com o Estado. O regimento estabelece ainda as políticas de reembolso e o respeito aos limites de valores.
O Código de Ética e Decoro Parlamentar traz informações sobre como o parlamentar deve se comportar dentro da Câmara e perante a população, invocando a Constituição Federal em casos de uso indevido de dinheiro público:
“Art. 5° – Atentam, ainda, contra o decoro parlamentar as seguintes condutas, puníveis na forma deste Código:
(…)
VII – usar verbas de gabinete ou qualquer outra inerente ao exercício do cargo em desacordo com os princípios fixados no caput do art. 37 da Constituição Federal” (que versa sobre os princípios da administração pública, como impessoalidade, moralidade, eficiência, etc.).
No limite da legalidade e da ética
“A cada vez que se examina cada um desses itens [da cota parlamentar], você encontra um escândalo. Esse é mais um”, analisa Gil Castello Branco, um dos representantes da associação Contas Abertas, que tem o objetivo de fomentar a transparência e o acesso à informação.
“Não deveriam existir esses recursos que eles disponibilizam para divulgar mandato parlamentar. Ao meu ver, seria inconstitucional. Se um deputado passa quatro anos divulgando o mandato parlamentar, da forma como eles fazem, inclusive comprando matérias, no próximo pleito eleitoral essa eleição será completamente injusta. É um candidato que passou quatro anos se promovendo versus um candidato que não teve essa oportunidade. [A cota parlamentar] serve para perpetuar os políticos que lá estão”.
Para além da questão legal, a preocupação de Castello Branco é o poder que deputados têm de moldar a opinião dos eleitores.
“Eles estão dominando os jornais locais, tentando dirigir a opinião pública para verdades que podem estar sendo distorcidas. Comprar matéria é tentar distorcer os fatos, pela ótica do parlamentar, e talvez tentar criar uma opinião pública favorável ao mandato com dinheiro público. […] A meu ver, essa cota já deveria ter sido revista”, conclui.
Não há uma legislação específica para coibir a prática de compra de matérias, como aponta o diretor executivo da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Ricardo Pedreira. Para contornar essa omissão, o Conselho de Administração do órgão instaura processos sempre que seu código é violado.
“O Código de Ética e Autorregulamentação da ANJ determina que é necessária uma clara diferenciação entre os conteúdos editorial e publicitário, que possa ser facilmente identificável pelos leitores. As infrações [caso essa identificação não ocorra] podem ser advertência, suspensão ou exclusão do jornal dos quadros da ANJ”, explica.
Contudo, essa medida não atingiria blogs, revistas, portais e afins.