A Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil por ter violado os direitos às garantias judiciais, igualdade perante a lei, proteção judicial e integridade pessoal no caso da morte de Márcia Barbosa de Souza, em 1998. Na época, a estudante de vinte anos foi assassinada pelo então deputado estadual pela Paraíba Aércio Pereira de Lima.
O caso, no entanto, foi a julgamento apenas em 2003, depois de a Assembleia Legislativa do estado recusar, por duas vezes, dar início à ação penal contra o parlamentar. A sentença, que obriga o país a implementar medidas contra o feminicídio e a pagar uma indenização à família da vítima, foi divulgada nesta quarta-feira.
De acordo com a matéria originalmente publicada em O Globo, o caso foi submetido à Corte em 2019 e destaca a recusa pelos deputados em abrirem o processo penal contra Aércio. Pelo seu cargo público, e pelas regras de imunidade vigentes na época, ele poderia ser julgado apenas com a aprovação da assembleia. Por isso, somente em 2003 a ação começou a ser apreciada pela justiça em primeira instância, e quatro anos depois o ex-deputado pelo PFL, antigo DEM, foi condenado a 16 anos de prisão. Apesar de ter recorrido da decisão, Aércio faleceu no ano seguinte, antes de ter seu recurso analisado. O ex-parlamentar nunca chegou a ser preso, e o Ministério Público recomendou o arquivamento do processo por insuficiência de provas.
A Corte destaca, na sentença, a “aplicação indevida de imunidade parlamentar em benefício do principal responsável pelo assassinato de Márcia Barbosa de Souza” e que a investigação do crime foi “de natureza discriminatória com base no gênero”. Para o procurador regional da República, Vladimir Aras, a reabertura do inquérito não foi solicitada pelo tribunal já que, pelo acusado estar morto, não há mais a possibilidade de impor a ele uma pena ou sanção.
Entre as determinações do órgão judicial está a criação, no prazo de um ano, e implementação, em no máximo três anos, de um sistema de coleta nacional de dados que permitam a análise quantitativa e qualitativa dos atos de violência contra mulheres, com informações como raça, idade e classe social. O país também deverá elaborar e implementar, no prazo de dois anos, um plano de capacitação e conscientização das forças policiais encarregadas da investigação, e de operadores de justiça da Paraíba, com uma perspectiva de gênero e raça — uma vez que Márcia era uma mulher negra.
Já a família da vítima deverá receber da União o valor de 150 mil dólares em indenização no prazo de um ano. Além disso, o Estado deverá cobrir os gastos relativos ao processo, no valor de 20 mil dólares ao Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), 15 mil dólares ao Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares (GAJOP), ambos em no máximo um ano, e 1.579,20 dólares ao Fundo de Assistência Legal das Vítimas, no prazo de seis meses. Aras explica que o governo não pode deixar de cumprir as medidas observadas na sentença da Corte.
— O governo é obrigado a cumprir a sentença. Elas são válidas para o Brasil devido ao artigo 67 da Convenção Americana e a um decreto de 2002, que reconhecem a competência obrigatória da Corte. No caso do pagamento, ele pode ser feito mediante a aprovação de uma lei específica para isso, ou, sem ela, caso já haja verba no orçamento para o cumprimento dessas decisões — explica o procurador regional da República.
Ele ressalta que a decisão do tribunal não é passível de recurso, e que o Estado brasileiro pode apenas solicitar uma explicação ou interpretação da sentença, caso não concorde. Apesar dos prazos estabelecidos pela Corte, há ainda um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados, que foi aprovado pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias neste mês, que busca obrigar a União a pagar os valores referentes a decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos no prazo de 60 dias. O projeto ainda será analisado por outras comissões.
Procurado pelo GLOBO para comentar sobre a decisão, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos não respondeu.
O crime
O episódio que levou à sentença aconteceu em João Pessoa, na Paraíba, em 1998, quando Márcia e sua irmã viajavam de sua cidade natal, Cajazeiras, no interior do estado, para a capital. Na ocasião, Márcia se encontrou com o então deputado estadual Aércio Pereira de Lima, que conhecia há um ano, em um motel da região.
No dia seguinte ao encontro, a polícia foi acionada depois que um homem foi observado jogando o corpo de uma pessoa, posteriormente identificada como Márcia, em um terreno baldio próximo a João Pessoa. A causa do óbito foi declarada como asfixia resultante de uma ação mecânica. Quando o caso foi a julgamento, o ex-deputado estadual foi condenado como autor do crime.