Sem estratégia de comunicação definida, a Lava Jato teria caído no esquecimento. Quem afirma são os procuradores da força-tarefa de Curitiba Deltan Dallagnol e Carlos Fernando dos Santos Lima, em entrevista a Ana Luíza Albuquerque, da Folha.
Os quase quatro anos decorridos desde a deflagração da primeira fase da operação já permitem que agentes do processo tracem análises sobre o saldo da investigação.
À Folha, os dois procuradores falaram sobre a comunicação da operação, exposição pessoal, combate à corrupção, reforma política e eleições de 2018.
Folha – De que forma a Lava Jato revolucionou o que se entendia como investigação?
Deltan Dallagnol – A investigação permitiu alcançar resultados inovadores em razão de um grande apoio da sociedade, de uma série de lances de sorte e de um novo modelo de investigação. Dentro desse novo modelo, tem quatro pilares. O primeiro é o de colaborações premiadas, o segundo de cooperação interna e internacional, o terceiro de estratégia de fases e, em quarto lugar, exatamente o da comunicação.
Dentro da comunicação, esse caso inovou porque é impossível avançar contra interesses tão poderosos sem o apoio da sociedade. Além disso, quando se tornam investigados políticos relevantes, muitos deles dominando máquinas de comunicação em seus Estados, que estão acostumados a se defender, acusando e buscando tirar a credibilidade de quem os investiga. Existem muitas notícias falsas que começam a circular. Dentro desse ambiente é essencial uma maior transparência e ampliar e fortalecer os canais de comunicação.
Se criou o primeiro website de um caso criminal na história do país. Se adotou uma estratégia de entrevistas coletivas à imprensa sempre que foram feitas as principais acusações criminais. Além disso, deram-se entrevistas sempre indicadas pela assessoria de comunicação. Toda vez que alguém compareceu a uma entrevista não foi por voluntarismo, mas por existir uma política de comunicação oficial por trás que recomendava esse tipo de postura.
Carlos Fernando – Em termos de comunicação, você tem também uma mudança do próprio acesso que as pessoas têm aos fatos, porque hoje o sistema é eletrônico. O acesso ficou muito fácil, com uma chave pública. Todos os jornalistas podiam acessar a qualquer momento documentos que não estavam sob sigilo. Isso teve um efeito muito grande porque os próprios jornalistas desenvolviam linhas de análise de documentos e investigações com base naquilo que foi apreendido. O e-proc é um dos fatores mais importantes do sucesso da estratégia de comunicação.
E uma percepção de que nessas investigações, salvo uma extrema necessidade de sigilo, todos os documentos foram públicos. Existe às vezes o mau uso da palavra vazamento, quando na verdade houve uma decisão do juiz ao nosso pedido para que fosse levantado o sigilo. Não é vazamento porque não é ilegal, a decisão foi do juiz e o acesso via e-proc é garantido a todos.
A transparência gerou mais críticas à operação?
CF: A partir do momento que você permite a publicidade, dá a oportunidade para concordarem ou não com o que foi feito. É claro que vai gerar críticas por ter optado por uma política de comunicação, mas os criminalistas usam e abusam de uma política de comunicação de seus interesses. Nós ficaríamos muito indefesos se também não tivéssemos uma política ativa.
Se formos lembrar da divulgação do áudio entre o ex-presidente Lula e a então presidente Dilma Rousseff.
CF: Essa é uma decisão que foi tomada pelo Moro [Sergio, juiz], a pedido do Ministério Público. Nós sofremos a crítica e até o momento entendemos que está absolutamente correta.
Um agente público não tem mais direito à privacidade, tem um direito menor do que o cidadão comum. Quem vive uma vida pública deve se submeter a um escrutínio maior da população. Muitas vezes parece que alguns envolvidos nesses fatos acreditam que tinham um direito especial de privacidade por serem autoridades.
DD: Uma decisão como aquela não é de política de comunicação, é uma decisão jurídica sobre o princípio da publicidade. É coerente com todas as decisões prévias e posteriores. Em regra na Lava Jato, todos os processos são públicos, salvo quando existe uma excepcional justificativa para que o sigilo seja mantido. Boa parte das críticas à atuação existiriam ainda que não houvesse transparência, porque há grandes interesses envolvidos impactados pelas investigações.
Como seria o cenário da Lava Jato se não houvesse uma política de comunicação tão forte?
CF: Pergunto normalmente em palestras Conhece quais foram os fatos da Operação Boi Barrica ou os fatos que realmente levaram a Castelo de Areia a ser derrubada? As pessoas não sabem. O não saber é muito perigoso porque oculta manobras muito graves. O que acontece se não tivesse o e-proc, baixa de sigilo, entrevistas? Tudo teria sido eventualmente morto num habeas corpus qualquer, como tantas operações no passado.
Por que a Lava Jato foi diferente?
CF: Porque aprendemos. Porque o mundo estava diferente, o próprio poder político naquele momento histórico não estava coeso para reagir à Lava Jato. Havia muitos interesses de que talvez essa investigação atingisse apenas um partido. Não perceberam que era uma investigação do próprio sistema de financiamento da política.
A política de comunicação da Lava Jato vai ser replicada em próximas investigações?
CF: Tenho a impressão que de certa forma já está sendo replicada. O Rio de Janeiro costuma fazer coletivas, tem todo o procedimento que, se não é igual, é aproximado.
DD: O e-proc vai ser replicado quando existir processo eletrônico. Esse primeiro fator depende de uma capacidade tecnológica para replicar. Outro fator, o que diz respeito à visão dos atores do processo quanto à amplitude do princípio da publicidade, vai depender de quem é o juiz, os procuradores, os delegados. Mesmo hoje, depois de tudo que aconteceu, o STF ainda mantém o sigilo em uma série de casos da própria Lava Jato.
No tocante ao terceiro conjunto, website, entrevistas coletivas, vai depender do perfil do caso e do quanto se torna pertinente ou existe demanda. Se um promotor do interior quiser fazer uma entrevista coletiva sobre uma acusação que ofereceu contra alguém que contrabandeou dez caixas de cigarros, provavelmente vai estar sozinho na entrevista.
Os senhores sentem uma pressão maior sobre o trabalho? Como lidam com a exposição?
CF: A exposição decorre de uma responsabilidade. Tenho 39 anos de serviço público e nunca tive um histórico de exposição como estou tendo agora. Chegamos à conclusão de que era necessário tomar a frente da comunicação. Como procurador não estou castrado dos meus direitos políticos e de me manifestar. No acordo da J&F, o Ministério Público foi atacado de uma maneira extraordinária. Nos colocamos para fazer essa defesa pública da instituição. Mas normalmente não é agradável, perde muito da sua privacidade. É uma dificuldade, mais para o dr. Deltan do que para mim.
DD: Nós trabalhamos em casos como o do Banestado, o do Fernandinho Beira-Mar, e eu jamais tinha dado uma entrevista à televisão até novembro de 2014. Nós sempre evitamos exposição. Tomamos neste caso como parte de um dever, e não uma oportunidade.
Os senhores imaginavam que a exposição seria tão grande?
CF: Mesmo nós que lidamos com esse tipo de criminalidade, não imaginávamos que estaria tão espraiada e interligada aos negócios públicos. No começo, fui convidado pelo Deltan. Eu cheguei e falei: ‘Olha, parece tão pouca essa investigação’. Era uma investigação de quatro doleiros. Tinha um pezinho no Paulo Roberto Costa [ex-diretor da Petrobras] ganhando uma Land Rover do Youssef [Alberto, doleiro]. Nesse pezinho aí que nasce a Lava Jato. Foi bastante surpreendente.
A campanha das 10 Medidas Contra a Corrupção veio na esteira da Lava Jato. Como foi o processo?
DD: Foi uma iniciativa do Ministério Público que acabou sendo abraçada pela sociedade. Hoje ouvi uma afirmação do Joaquim Falcão, professor de Direito da FGV do Rio de Janeiro Ele colocou que a Lava Jato não vai ser julgada pelos réus que condenou, mas pela capacidade de mobilizar a sociedade e promover transformações que permitam reduzir índices de corrupção.
Grande parte da sociedade tinha esperanças de que a Lava Jato transformaria o país. Esse foi o erro que se cometeu na Itália [país da Operação Mãos Limpas]: se colocou uma expectativa demasiada sobre a capacidade da Justiça de transformar uma realidade extremamente corrupta. Nosso papel foi alertar a sociedade sobre os limites que nós temos. Na Lava Jato não existem heróis. Ninguém aqui vai conseguir transformar o país e ninguém deseja essa função.
Mas parte das pessoas espera isso.
DD: Exatamente. Por isso desde lá de trás sempre ressaltamos que se for para existir transformação do país isso deve ser realizado pela sociedade como um todo. Trabalhamos para prover instrumentos que nos parecem adequados para caminhar nessa direção, como as 10 medidas.
CF: As 10 medidas focam muito na questão da impunidade. Além da impunidade, temos um sistema político que gera criminalidade pela necessidade excessiva de recursos para as campanhas e para os partidos. Diante disso, começamos a fazer um diagnóstico de reforma política. Não queremos especificamente uma reforma ou outra, isso é uma tarefa do Congresso. Nós estamos dizendo: o sistema proporcional de lista aberta é excessivamente caro e gera a necessidade da corrupção para sustentar. As medidas da impunidade atacam por um lado, mas sem uma reforma da nossa maneira de fazer política, vamos ter muita dificuldade porque a necessidade de dinheiro vai persistir.
Os resultados da Lava Jato devem influenciar as eleições do ano que vem?
DD: Como a Lava Jato revelou crimes praticados por diversos representantes, caberá à sociedade avaliar se deve incumbir dessas pessoas que traíram os interesses que lhes foram confiados um novo mandato ou não. Recentemente algumas pesquisas revelaram que, para o brasileiro, a corrupção é o maior problema nacional. Se aliar essa visão a outras pesquisas que dizem que hoje o eleitor quer votar em pessoas que não são investigadas na Lava Jato e às revelações da Lava Jato, isso tende a ter um efeito nas eleições.
Mas pesquisas também indicam que boa parte da sociedade quer votar no ex-presidente Lula, réu em sete processos.
CF: Não estamos dizendo que a corrupção é demérito de uma pessoa ou partido. Estamos dizendo que o sistema gera a necessidade de caixa extraordinário. Vemos espraiado em quase todos os partidos: se não é corrupção, é caixa 2. Dificilmente temos só dinheiro limpo na campanha de algum candidato. Não cabe a nós fazer escolhas. Entendemos que uma pessoa que cometeu atos de corrupção não deve ser eleita. Qualquer pessoa. A Ficha Limpa está aí para isso. A pessoa condenada por corrupção não deve ser candidata.
O que muda com a reforma política ?
CF: Concentrou nas mãos dos caciques partidários o volume de recursos públicos do fundão. Na verdade a reforma política somente dificultou a renovação. ‘Está faltando dinheiro de outras fontes, então vamos usar a fonte pública’. Não mudou essencialmente nada.
Os senhores pretendem atuar junto à sociedade civil em campanhas para 2018?
CF: Estou me encaminhando para me retirar da Lava Jato e me aposentar assim que possível. Existem essas medidas novas, analisadas pela Fundação Getulio Vargas, e todos estamos dispostos a lutar pessoalmente por mudanças.
DD: Existem movimentos da sociedade no sentido de construir iniciativas que possam fazer com que as eleições de 2018 produzam candidatos comprometidos com a integridade. Na linha que temos nos posicionado há anos, nossa inclinação é apoiar iniciativas apartidárias, que não identifiquem políticos específicos, mas que tomem critérios de eleição compatíveis com a nossa Constituição. Pessoas que comunguem com princípios democráticos, tenham um passado íntegro e um compromisso com a implementação de uma agenda anticorrupção.