A guerra entre facções criminosas que explodiu no início deste ano no Amazonas, Roraima e Rio Grande do Norte e deixou um saldo de ao menos 135 mortes em diferentes cadeias do país teve a sua primeira faísca três meses antes. Em 16 de outubro, no presídio de Monte Cristo, em Boa Vista (RR), 12 presos de um bando rival foram mortos por criminosos do PCC (Primeiro Comando da Capital) com brutalidade atroz: decapitações, esquartejamento e queima de detento vivo.
Esse é considerado o primeiro movimento prático da facção paulista para a execução de seu plano: enfrentar diretamente bandos rivais para conquistar o domínio de todos os presídios do país e, assim, formar o que chamam internamente de a “República do PCC”.
Esse objetivo nacional, ainda distante, é semelhante ao que acontece em terras paulistas, com a hegemonia do crime organizado, o monopólio do tráfico de drogas e a obrigação dos criminosos de dar satisfação direta aos chefes do bando, como Marcos Camacho, o Marcola, preso no interior de São Paulo desde 1999, de acordo com a Folha.
Durante dois meses, a reportagem da Folha percorreu três Estados, vasculhou documentos inéditos e sigilosos, conversou com policiais civis e militares, promotores, advogados, especialistas em segurança e secretários de Estado.
Segundo essa apuração, a eclosão dessa disputa sangrenta pelo controle de prisões, representada pela matança no início deste ano, já era esperada por autoridades brasileiras há três anos.
Foi nessa data que membros da facção nascida nos anos 1990 em São Paulo passaram a sofrer represálias nos Estados do Mato Grosso, Amazonas, Santa Catarina e Paraíba, entre outros.
Nesses locais, sob ameaça de morte, criminosos ligados ao PCC foram proibidos por presos de grupos rivais de realizarem, dentro e fora das cadeias, o “batismo” de novos integrantes –ritual para a entrada na facção em que um membro apresenta ao resto do grupo um aspirante, que se compromete a seguir o estatuto e as ordens da facção e a realizar contribuições financeiras.
Tanto o padrinho, do PCC, quanto o afilhado seriam mortos se essa iniciação fosse descoberta.
“Esse conflito está para explodir desde 2014. Eles [PCC] foram se movendo, se armando, se preparando para a tomada do país e é isso que eles estão fazendo”, diz o promotor Lincoln Gakiya, um dos principais especialistas em PCC do país. Ele atua na região de Presidente Prudente, extremo oeste paulista, onde estão confinados alguns dos chefes da facção, entre eles o próprio Marcola.
“O confronto não tem volta. Não tem como tentar mais um acordo [entre eles], e o plano [do PCC] agora é dominar tudo. Isso vai se estender para as ruas. No Amazonas, por exemplo, o PCC é minoria, mas já enviou muito armamento para lá e para o Acre. Temos comunicado para as autoridades federais que eles vão começar a guerra a partir das ruas”, disse.
REDE DE COMUNICAÇÃO
Um dos principais indícios do real motivo dessa guerra está em mensagens destinadas à cúpula do PCC e interceptadas pela Polícia Civil de São Paulo. A captação dos recados ocorreu durante a chamada Operação Ethos, que investigou a rede de comunicação da facção criminosa paulista.
Em carta datada de 3 de dezembro de 2015, escrita de uma das celas do presídio federal de Catanduvas, no Paraná, um integrante da facção reclama à cúpula do grupo de problemas enfrentados por “irmãos” –forma como se referem a outros membros da facção– naqueles Estados com a proibição dos “batismos”.
São citados nominalmente grupos que mais tarde se aliaram à facção carioca Comando Vermelho, como a Família do Norte, bando que se tornaria conhecido nacionalmente em janeiro deste ano com o massacre de presos ligados ao PCC no Amazonas.
O documento, em poder da polícia paulista, também narra tentativas de diálogo do PCC com Márcio dos Santos Nepomuceno, o Marcinho VP, principal chefe do Comando Vermelho, para que este tentasse intervir de alguma forma para suspender as represálias aos “batismos” nos Estados.
Segundo a troca de mensagens, a conversa não evoluiu da forma que o PCC esperava. Marcinho VP teria alegado não ter condições de intervir em questões regionais, enquanto a facção paulista entendeu essa resposta como uma declaração de guerra. “Não estou me sentindo bem em saber que irmãos nossos estão passando por várias situações em Mato Grosso, Amazonas, Santa Catarina, Paraíba, e saber que o CV [Comando Vermelho] está junto e misturado com essas situações e eu ficar em harmonia com eles aqui não”, diz trecho de uma das cartas.
A guerra pelo “batismo” pode parecer um motivo fútil para um conflito tão violento nas prisões do país. Mas advogados do PCC ouvidos pela Folha dizem que este é um dos instrumentos mais importantes da facção para o domínio do crime nas ruas.
Um deles, há mais de 20 anos perto dos chefes da facção, explica a lógica disso: um criminoso pode ter muitos comparsas armados nas ruas e dominar o tráfico de drogas, mas, quando ou se ele for preso, vai sozinho e desarmado para a prisão, diz o defensor, que só falou com a reportagem sob a condição de não ter seu nome revelado.
Para o promotor Gakiya essa narrativa faz sentido, já que as represálias contra o PCC de fato ocorreram quando os rivais perceberam que o domínio da cadeia também significa o domínio nas ruas. “Tem o sentido do ‘batismo’ para a autoproteção dentro dos presídios. Enquanto estava só nisso, não incomodava. Mas quando começou a sair das prisões, com pontos de drogas cada vez mais ligados ao PCC, isso passou a incomodar outras facções.”
De acordo com documentos a que a Folha teve acesso, investigações sobre o crime organizado pela Polícia Civil do Rio também constataram que a guerra entre os grupos criminosos foi motivada, entre outros fatores, pela proibição do “batismo”.
Trecho de relatório dessa apuração afirma que, além de dívidas não quitadas do Comando Vermelho com o PCC e da associação da facção carioca com grupos do Norte e Nordeste, incomodava os paulistas a informação, “interceptada em alguns diálogos de Léo [criminoso do PCC responsável pelo Rio], de que o Comando Vermelho estaria proibindo o ‘batismo’ de novos associados por parte do PCC, repreendendo seus associados”.