O paraibano atual presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), Vital do Rêgo Filho, o Vitalzinho, durante entrevista à Veja, fez um alerta sobre a possibilidade de um colapso nas contas previdenciárias e o perigo de, num prazo de cinco anos, não se ter dinheiro para pagar aposentadorias.
Durante a entrevista, Vitalzinho se mostra crítico severo do excesso de isenções fiscais e elabora um diagnóstico alarmante sobre o sistema previdenciário ao dizer que o país pode parar por falta de receitas.
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“Desde 2016, quando deu o verniz legal para o processo de impeachment que tirou Dilma Rousseff do cargo, o Tribunal de Contas da União (TCU) passou a ser entreposto frequente de consultas de presidentes da República, governadores, parlamentares e prefeitos. São questionamentos sobre temas variados, que vão de parâmetros para programas de concessão a calibragens na agenda econômica. É, acima de tudo, uma medida preventiva dos gestores para evitar futuras dores de cabeça. Desde 1º de janeiro a Corte de Contas é comandada pelo ex-deputado e ex-senador Vital do Rêgo, que assume o cargo no momento em que o TCU ganhou protagonismo adicional também por ser responsável por avalizar acordos com empresas privadas encrencadas e fiscalizar as bilionárias e pouco transparentes emendas parlamentares e, a partir de agora, até os sites de apostas. Egresso de uma tradicional família de políticos paraibanos, o ministro diz que sua gestão, além de escrutinar as “finanças” do Executivo, terá um lado educativo. É bom o governo Lula ficar atento. Nesta entrevista a VEJA, o novo presidente do TCU faz críticas severas ao excesso de isenções fiscais, elabora um diagnóstico alarmante sobre o sistema previdenciário e diz que o país pode parar por falta de receitas.
O senhor era senador em 2014, quando deixou o mandato para se tornar ministro do TCU. Em termos de poder, qual é a diferença entre um parlamentar e um ministro de Contas? São duas concepções diferentes de poder. O presidente Lula acabou de sancionar um projeto que apresentei como senador — e olha que já estou no TCU há dez anos. No tribunal, sinto que a minha decisão tem resultado mais imediato. Meu papel hoje é arbitrar e ensinar para que o gestor público não erre. Até algum tempo atrás o TCU só entrava depois do jogo terminado, como se fosse um comentarista de mesa-redonda de futebol. Hoje ensinamos o prefeito a não errar, ensinamos os ministérios a fazer concessões para que a bola chegue aqui mais redonda, estimulamos o cidadão a ser ele próprio um auditor social. E ainda temos um processo muito importante, que é a apreciação das contas públicas da Presidência da República.
O papel educativo do TCU foi imposto a fórceps, como quando o tribunal deu parecer pela rejeição das contas de Dilma Rousseff e abriu caminho para o impeachment? Entendi que a cultura do tribunal não tem que ser só punitivista, mas também pedagógica. Antes de punir, temos que ensinar como fazer o certo. Dos 25 000 acórdãos que temos, metade são situações em que verificamos danos à administração pública e apontamos os responsáveis. Para diminuir isso, temos de ensinar os gestores a não errar. Minha ideia é fazer reuniões em cada estado da federação com os prefeitos, levando manuais e informativos, e treinar três funcionários de cada prefeitura para se tornarem gestores capacitados. Se, ainda assim, eles errarem, não os verei com os olhos de quem não quis aprender. Vamos ter de punir.
“Do jeito que está, a Previdência será inviável em cinco anos. Se não mudar, talvez na próxima década não consigamos ter receita para pagar aos aposentados do Brasil”, avalia Vital.
Não é contrassenso falar no TCU como uma escola para gestores públicos quando vagas no tribunal têm sido oferecidas como moeda de troca por apoio político como aconteceu recentemente? Não nos metemos nessa questão de o Congresso decidir quem vem para o TCU. Eu mesmo larguei o mandato de senador e preferi vir para o tribunal. Foi a decisão mais difícil da minha vida. Como nós gozamos de respeitabilidade, muita gente gostaria de estar aqui participando da vida brasileira. Sobre essa questão de moeda de troca, quando o indicado chega a ministro, não tem essa história de ser braço político do partido. Se alguém estiver com alguma intenção como esta, aqui não consegue. O ambiente não deixa. Temos um corpo técnico fortíssimo.
Na época da privatização da Eletrobras, o senhor disse que o TCU sofria “pressões exógenas e poderosas”. A que ou a quem o senhor estava se referindo? Eu falei com convicção que a privatização da Eletrobras era danosa aos cofres públicos, mas fui voto vencido. Eu via pressões em cima do TCU para privatizar rapidamente e privatizar algo do tamanho da Eletrobras, mas o governo perdeu muito dinheiro. O povo brasileiro, que era o principal acionista, perdeu. Mas quero deixar claro que a gente recebe pressões absolutamente legítimas da sociedade e sobre todos os temas. Temos que receber mesmo. Não somos aqui uma casta de blindagem. Parlamentar, Executivo, Judiciário, todos pressionam o TCU, mas no sentido legal da palavra. Tanto é assim que queremos incentivar a interligação entre os poderes. O TCU quer ser uma ponte para o diálogo.
O TCU é responsável por zelar pelo dinheiro público, mas raramente consegue reaver os recursos desviados. Das condenações do tribunal pelos bilhões roubados no escândalo do petrolão, por exemplo, não foi devolvido um centavo sequer. Qual a solução para isso? Nós fazemos o nosso papel de levantar o dano, apontar os responsáveis e punir. A partir de auditorias feitas por nós, a Advocacia-Geral da União emite títulos executivos de cobrança contra aqueles que foram condenados. O tribunal tem ainda outros instrumentos de punição, como deixar a pessoa fora da administração pública por até oito anos e decretar a inidoneidade de uma empresa. De fato, o Brasil tem um passivo de crédito enorme a ser recebido, mas lembro que esse passivo existe porque o TCU analisou, por exemplo, responsabilidades pelos escândalos de corrupção.
O Tribunal inovou ao criar uma secretaria para buscar consensos entre o poder público e empresas privadas. Mediar acordos pode comprometer a independência do tribunal em julgar quem burla regras e contratos? Não. O cidadão perderá muito menos tendo um bom acordo do que um litígio interminável. Nossa ideia é tentar um consenso porque o interesse público é que é o capital: o cidadão comum que está esperando que seu tíquete de pedágio seja mais barato ou que a tarifa aérea seja mais acessível. Dentro de um consenso sabemos que os dois lados têm de ceder. Claro que temos que ficar atentos ao histórico controverso de empresas que buscam acordo no TCU, mas fizemos doze acordos positivos e tem mais de trinta ainda para serem julgados. Apenas em um envolvendo usinas termelétricas, reduzimos a conta de energia elétrica em 580 milhões de reais. O TCU é um agente de segurança jurídica.
Os senhores, a partir de agora, vão fiscalizar também as emendas parlamentares, que chegarão a 50 bilhões de reais em 2025. Não é dinheiro demais nas mãos do Congresso em um país com tantas carências? Não sei se o poder discricionário do Congresso está muito grande, mas o do governo certamente está muito pequeno. Não entro na questão da disputa do Orçamento entre governo e Congresso porque isso é coisa da política, mas é importante dizer que governo e Congresso têm de ter muito cuidado com o risco de a máquina pública parar. Quando se tem muito poucas reservas e ainda por cima elas são discricionárias, há o risco de um shutdown. Não sou tão pessimista, mas em casos assim a falta de recursos vai afetar principalmente obras de infraestrutura.
Familiares do senhor tiveram direitos suspensos pela ditadura militar. Vendo hoje as investigações da Polícia Federal, considera que estivemos à beira de episódios semelhantes? Meu pai e meu avô foram cassados pelo AI-5 no dia 13 de janeiro de 1969. Isso marcou muito a minha infância. Eu saí de Brasília e fui morar numa fazenda com carro do Exército na frente da minha casa. Segundo informações do inquérito que foi aberto, o país passou recentemente por momentos inimagináveis de gravidade institucional e democrática. Eu não pensava que se chegasse a tanto. O eleitor brasileiro é bem-aventurado, porque, se erra, tem condições de consertar seu erro na próxima eleição. Faltou o sentido de respeito à democracia, que é nosso maior patrimônio.
Em um momento de aperto nos gastos públicos, o governo tem de lidar com o regime de Previdência dos militares, que é extremamente deficitário, e com renúncias fiscais pouco efetivas. O Executivo tem feito más escolhas? Fui relator das contas do governo que, tirando o momento do impeachment, talvez tenham sido as que geraram maiores discussões a respeito do país. Eu abro a boca para dizer que a renúncia fiscal no Brasil não tem resultado social. Além de não ter resultado, ao final do período de vigência, o governo ainda renova o benefício, ficando ad aeternum, ou a empresa vai embora do país. Isso gera repercussão no Orçamento, porque não há receitas. O setor automobilístico, para mim, é o mais gritante. Insisto que vai ter uma hora que a máquina vai parar.
“Não entro na questão da disputa do Orçamento porque isso é coisa da política, mas é importante dizer que governo e Congresso têm de ter cuidado com o risco de a máquina pública parar”, diz Vital.
E no caso dos militares? Os números falam por si em termos de crescimento da dívida previdenciária. É bastante gritante. Arrecadaram-se 9 bilhões de reais em 2023 e gastaram 59 bilhões. O endividamento da Previdência dos militares é em progressão geométrica. Meu papel aqui é dizer que, do jeito que está, a Previdência será inviável em cinco anos. Se a gente não mudar, e não falo só dos militares, talvez na próxima década não consigamos ter receita para pagar aos aposentados do Brasil.
Por que o tribunal se envolveu na discussão sobre a regulamentação das bets e a participação de beneficiários do Bolsa Família em apostas eletrônicas? Eu reputo uma questão importantíssima para o Brasil discutir, não apenas em relação ao valor das concessões, mas também em relação aos custos social, sanitário e de saúde mental. Para mim, o Tribunal de Contas da União está incluído neste processo como órgão de fiscalização da receita pública, porque, quando uma outorga de 30 milhões de reais é paga para regularizar a empresa de apostas, isso entra nos cofres do Tesouro e passa a ser dinheiro público. Temos total competência e legitimidade para atuar no caso das bets também por conta de casos dolorosos, como aqueles que nós vimos que beneficiários do Bolsa Família estão gastando o dinheiro que recebem em apostas em detrimento da alimentação. É uma situação vexatória. Temos que fazer uma ampla auditoria sobre as bets no Brasil. Só substâncias químicas viciam tanto assim.
Publicado em VEJA de 3 de janeiro de 2025, edição nº 2925“