O Projeto de Lei (PL) nº 2903/2023, que define regras de gestão e estabelece um marco temporal para a demarcação de terras indígenas, é inconstitucional e inconvencional, razão pela qual deve ser vetado. Esse é o entendimento defendido pelo Ministério Público Federal (MPF) em nota divulgada nesta quinta-feira (19). O texto legislativo foi aprovado em caráter de urgência pelo Senado Federal em 27 de setembro, após tramitar na Câmara dos Deputados como PL 490/2007. O prazo para veto ou sanção da norma pela Presidência da República termina amanhã (20).
A nota pública foi elaborada pela Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais (6CCR), órgão superior responsável pela coordenação, revisão e integração do exercício funcional dos procuradores da República que atuam na temática em todo o país, e pelo seu Grupo de Trabalho sobre Demarcação de Terras Indígenas. O texto, assinado por diversos membros do MPF, reitera manifestações anteriores sobre a impossibilidade de alteração do regime jurídico das terras indígenas em desacordo com garantias constitucionais e direitos concedidos aos povos originários por meio de tratados internacionais.
O documento reafirma o entendimento de que a alteração do regime jurídico da demarcação de terras indígenas não pode ser feita por meio de lei ordinária. Segundo o órgão, a proposta provoca restrições ao exercício dos direitos garantidos aos indígenas pela Constituição, o que impede qualquer alteração por lei ordinária. Além disso, aponta que tais direitos fundamentais são cláusulas pétreas, ou seja, não seria possível nenhuma alteração nem mesmo por meio de Proposta de Emenda à Constituição (PEC).
A Câmara do MPF ressalta ainda que a tese do chamado marco temporal – introduzida pelo projeto de lei para impedir o reconhecimento da ocupação tradicional das terras indígenas que não estivessem em posse da comunidade em 5 de outubro de 1988 – foi afastada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Ao julgar o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, a Corte estabeleceu como tese de repercussão geral que “a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 5 de outubro de 1988 ou da configuração do renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição”.
Demarcação – Em outro ponto da nota, a 6CCR afirma que o Projeto de Lei 2903/2023 ofende direito adquirido dos povos indígenas concedido diretamente pelo poder constituinte. Isso ocorre porque a norma estabelece que, antes de concluído o procedimento demarcatório e de indenizadas as benfeitorias de boa-fé, “não haverá qualquer limitação de uso e gozo aos não indígenas que exerçam posse sobre a área, garantida a sua permanência na área objeto de demarcação”. Além disso, o projeto de lei veta indiscriminadamente a ampliação de terra indígena já demarcada.
Na avaliação do MPF, nesse ponto, a norma incorre em equívoco por não conhecer o caráter declaratório do processo de demarcação das terras indígenas, conforme interpretação do STF. Segundo a Corte, a demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígenas.
Isolamento voluntário – Outro aspecto questionado pelo MPF é a possibilidade de contato forçado com povos indígenas em isolamento voluntário para a realização de “ação estatal de utilidade pública”. Segundo a nota, essa possibilidade viola o direito previsto pela Constituição de que a organização social, os costumes, as línguas, as crenças e as tradições dos povos indígenas sejam respeitados.
O documento cita que o direito de manter-se em isolamento voluntário está previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1989, e na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007. Além disso, o MPF aponta que, na maioria das vezes, o contato com povos isolados se mostrou catastrófico para os indígenas, resultando até mesmo em genocídio.
A 6CCR também ressalta que não houve consulta aos povos indígenas, o que invalida a norma. “O direito à consulta está prevista no artigo 6 da Convenção 169 da OIT, promulgada pelo Brasil por meio do Decreto 5.051/2004, atualmente em vigência pelo Decreto 10.088 de 5 de novembro de 2019”, destaca.