“Os arranjos legislativos que, por qualquer modo, impliquem sub-representação de mulheres e de negros na política para aquém dos patamares já alcançados, além de violarem os limites materiais ao poder de emenda à Constituição Federal, significam inadmissível retrocesso em políticas afirmativas voltadas a assegurar isonomia política de gênero e racial”. A manifestação é da procuradora-geral da República, Elizeta Ramos, em parecer contrário à anistia concedida pela Emenda Constitucional (EC) 117/2022 aos partidos políticos que não destinaram recursos mínimos a mulheres, negros e programas de fomento à participação feminina nas últimas eleições. As regras previstas nos artigos 2º e 3º da emenda são alvo de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo partido Rede Sustentabilidade e pela Federação Nacional das Associações Quilombolas (Fenaq).
Os dispositivos impedem a aplicação de qualquer tipo de sanção – como devolução de dinheiro, multa ou suspensão do Fundo Partidário – às agremiações que não cumpriram a cota mínima de financiamento em razão de gênero e raça até 2022. Desde o pleito de 2018, os partidos são obrigados a destinarem ao menos 30% dos recursos públicos de campanha às mulheres. A partir de 2020 também se tornou obrigatória a repartição de recursos na exata proporção entre candidatos negros e brancos. A EC 117/2022 também impede a Justiça Eleitoral de condenar os partidos que até 2022 não aplicaram ao menos 5% dos recursos públicos recebidos em ações de fomento à participação feminina na política. Essa medida é obrigatória desde 2009 pela legislação eleitoral.
Ao se manifestar pela procedência da ADI 7.419, a procuradora-geral da República destaca o princípio da vedação do retrocesso. Segundo ela, esse princípio busca proteger os cidadãos contra medidas tomadas pelos órgãos estatais no sentido de reverter direitos já garantidos por normas ou decisões anteriores. O objetivo é sempre assegurar a ampliação desses direitos, impedindo retrocessos. “O legislador, ou mesmo o constituinte reformador, está vinculado ao patamar mínimo de proteção do direito anteriormente conquistado e não poderá simplesmente eliminar os standards normativos alcançados”, sustenta a PGR.
Para Elizeta Ramos, as conquistas alcançadas em termos de igualdade de gênero e igualdade racial no campo da participação político-eleitoral não podem ser simplesmente desfeitas, enfraquecidas ou tornadas sem efeitos. A PGR explica que, ao invocar a vedação de retrocesso, não se pretende retirar do Congresso Nacional uma de suas funções mais expressivas: de reforma da Constituição Federal. Na verdade, segundo ela, o que se busca é estabelecer que os ajustes normativos, alternativos e compensatórios das políticas afirmativas voltadas a assegurar a isonomia política de gênero e racial sejam sempre direcionados à ampliação e aprimoramento dessas ações inclusivas, nunca no sentido de torná-las desprovidas de eficácia.
“O financiamento especial para candidaturas de pessoas negras, de mulheres e de outros grupos sub-representados visa a corrigir distorções e a promover representação mais inclusiva, com reflexos diretos na abertura de espaços políticos e consequente capacidade de as decisões parlamentares traduzirem as vontades e as necessidades das minorias sub-representadas”, sustenta a PGR. Seguindo essa linha, ela enfatiza que anistiar toda e qualquer sanção pelo descumprimento da política pública afirmativa – como fizeram os artigos 2º e 3º da Emenda Constitucional 117/2022 – “viola o princípio constitucional da igualdade, pois era exatamente esse princípio que a política afirmativa objetivava densificar”.
Segurança jurídica – A PGR também contesta o argumento de que a norma questionada busca resguardar a segurança jurídica. Segundo ela, desde 2009, é dever dos partidos políticos destinarem ao menos 5% dos recursos do Fundo Partidário para a “criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres”. Essa obrigação foi incluída na Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096/1995) por meio da Lei 12.034/2009.
Por outro lado, Elizeta Ramos cita no parecer que, ao longo do tempo, vários arranjos legislativos buscaram anistiar os partidos políticos das obrigações de fomentar candidaturas femininas, mas essas normas foram declaradas inconstitucionais pelo STF. Por esse motivo, a procuradora-geral rebate o argumento de que os artigos 2º e 3º da EC 117/2022 instituíram um regime de transição para o cumprimento da ação afirmativa, pois a política pública já existia desde 2009.
Legitimidade – No parecer, Elizeta Ramos também opina pela exclusão da Federação Nacional das Associações Quilombolas (Fenaq) do polo ativo da ação por ausência de legitimidade. Ela explica que a Fenaq não juntou aos autos nenhum documento que comprovasse sua regular constituição, natureza jurídica e o âmbito de atuação. No entanto, levando em conta o nome da instituição, entende a PGR que a Fenaq não tem legitimidade para questionar os artigos 2º e 3º da EC 117/2022, “uma vez que o conteúdo normativo impugnado não atinge unicamente os quilombolas, alcançando a generalidade das candidaturas femininas e de negros”.
Por outro lado, a procuradora-geral defende que a Rede Sustentabilidade tem legitimidade para propor esse tipo de ação, independente da forma como a legenda se manifestou (a favor ou contrária) à aprovação da emenda, no momento de sua análise no Congresso Nacional.