Na zona rural de Oeiras, no Piauí, famílias de pequenos agricultores ainda enfrentam o velho drama da falta de acesso à água potável. Não deveriam. O município foi um dos contemplados por uma “força-tarefa das águas” anunciada pelo governo Jair Bolsonaro (PL) para o Nordeste e o norte de Minas. Dois anos depois, no entanto, poços abertos pelo programa estão lacrados. As obras pararam pela metade e bombas de retirada de água não foram instaladas.
De acordo com esta matéria publicada originalmente pelo Estadão, a situação se repete em todo o semiárido nordestino. Ao longo de três meses, o Estadão analisou contratos do atual governo que somam R$ 1,2 bilhão para a construção de poços no sertão. Os documentos mostram irregularidades em pregões milionários feitos em menos de dez minutos e a reserva de recursos para abertura de novos poços sem que outros sejam concluídos. O resultado é um cemitério de poços abandonados.
O agricultor Francimário Borges de Moura, de 47 anos, foi um dos moradores do assentamento rural de Faveira do Horácio, em Oeiras, que se entusiasmaram quando o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) começou a cavar um poço de 212 metros de profundidade, em junho de 2020, perto da comunidade. O poço, porém, foi lacrado ainda naquele ano. As 24 famílias da comunidade planejavam fazer um plantio de caju de 24 hectares. “O poço tem uma vazão bastante forte, potente, daria conta”, lamentou à reportagem.
A água que chega à casa de Valmira Fernandes de Araújo, de 37 anos, no povoado vizinho da Mata Fria, sai de um antigo poço privado com alto índice de sais. É um risco para a saúde e para aparelhos domésticos. Mesmo para tomar banho é considerada inadequada pelos moradores. Em busca de água potável, a família de Valmira anda cerca de um quilômetro até chegar a uma nascente. Próximo dali há um poço lacrado com a inscrição “DNOCS 3/8/2020″. Mais um poço construído pela metade. “Eles abriram, mas não encanaram a água para nós. A gente fica triste, porque tem água doce perto, mas não pode usar”, afirmou Valmira.
No povoado da Alagoinha, o governo federal cavou um poço público, mas a bomba não é potente para abastecer casas que ficam na parte alta do lugar. “A água tem gosto de sal. Em vez de espumar (com sabão), ela vira um material diferente. A gente põe a água no corpo quando está tomando banho e pode passar o sabão dez vezes: todas as dez vezes sai sujo”, disse o morador Antônio Francisco da Silva Costa, o Antônio Marçal, de 54 anos.
Para quem mora na região mais alta, “dificilmente” chega água. A água retirada do poço é salobra, com gosto mineral forte e desagradável, levemente salgado. Já a água da nascente, considerada “boa”, não tem gosto, mas é turva de terra.
No fim do ano passado, o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (Progressistas-PI), anunciou que a construção de poços seria uma marca do governo Bolsonaro no Nordeste. “O presidente nos deu a determinação de levar um grande programa, uma verdadeira força-tarefa para que a gente unifique diversos órgãos que são voltados ao sistema de abastecimento de água para a população”, afirmou.
A força-tarefa de abertura de poços envolveu três órgãos controlados por apadrinhados do próprio Ciro Nogueira e de líderes aliados do Planalto – a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), o Dnocs e a Fundação Nacional de Saúde (Funasa).
No primeiro semestre deste ano, Bolsonaro participou da entrega de poços no Nordeste. As obras foram citadas no discurso do presidente durante o lançamento de sua candidatura ao Palácio do Planalto, em julho, no Rio. “Água em grande parte do Nordeste é uma realidade”, disse. “Também o nosso Exército, com a Codevasf, fura dezenas de poços todos os meses, levando dignidade a essas pessoas. Eu estou mostrando o que nós fizemos, o que pretendemos seguir fazendo.”
As licitações para a construção de poços no País são genéricas. Parte dos editais da administração federal não informa a localidade exata onde o poço deve ser perfurado. Há pregões em que nem o tipo de rocha é especificado. Para especialistas em auditoria de obras públicas, isso influencia no preço final do contrato e limita a concorrência de empresas de pequeno e médio porte.
A súmula 177, do Tribunal de Contas da União (TCU), destaca que é “indispensável” ter uma “definição precisa e suficiente” do objeto das licitações, para que haja “igualdade” entre os participantes.
O Estadão teve acesso a um processo administrativo da Codevasf para abertura de poços no Piauí. Em março e abril, a estatal do Centrão, como é conhecida, recebeu seis ofícios de prefeituras, de associações e de um sindicato com a indicação dos locais onde os poços deveriam ser perfurados.
Ao Estadão, o presidente do Sindicato Rural da cidade de Pio IX (PI), Luís Pereira de Alencar, contou que indicou quatro comunidades. Ele admitiu que não sabe quantas pessoas serão beneficiadas e que poços são furados, até mesmo, em propriedades privadas. Mesmo assim convenceu a estatal a fazer a obra. “Não tem como precisar”, disse.
Procurados, Bolsonaro e Ciro Nogueira não responderam. Dnocs também não se manifestou.
Com poço, sem água
Falta de bomba
O governo federal fura poços pelo sertão, mas não instala os equipamentos do sistema de abastecimento. Sem bombas, a água não sai do buraco
Precariedade
Em alguns casos, o governo instala equipamentos precários, como bombas sem a potência adequada para destinar água até localidades mais altas
Má qualidade
Água potável não chega às casas; quando chega, é salobra
Pregões
No atual governo, foram realizados pregões de abertura de poços que somam um total de R$ 1,2 bilhão
Licitações
As licitações têm indícios de “superestimativa” de preço e limitação de concorrência. Uma licitação da Codevasf em Alagoas, de R$ 53 milhões, durou apenas dez minutos
Sob suspeita
Uma empresa venceu um pregão do Dnocs, do Piauí, sem comprovar capacidade técnica. O órgão é comandado por um amigo do ministro Ciro Nogueira (Casa Civil)
O que diz a Codevasf
A Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) informou ontem que seus pregões são abertos à livre concorrência e à participação de empresas de todo o País. A empresa afirmou que observa a súmula 177 do TCU, “com clara definição de objeto, quantidades e Estados”.
De acordo com o órgão, “os locais beneficiados são apontados na definição do objeto, no Termo de Referência”. “A localização exata de poços ocorre após visita técnica de responsável qualificado da empresa contratada, com ratificação de equipe técnica da Codevasf.”
Ao Estadão, a companhia declarou que a escolha dos locais onde vai perfurar poços está relacionada “à necessidade hídrica, ausência de rede de abastecimento de água, origem de recursos orçamentários e atendimento à política pública de redução da dependência de carros-pipa”. A Codevasf afirmou que atende a demandas de prefeituras e associações e a indicações de órgãos responsáveis pela descentralização de recursos, quando aplicável.