A partir de janeiro de 2023, caso deixe o Palácio do Planalto, como indicam pesquisas de intenção de voto, Bolsonaro poderá ser julgado pela Justiça comum, o que eleva as possibilidades de responsabilização penal.
De acordo com esta matéria originalmente publicada pela Folha, no cargo, o presidente só pode responder a processos penais que tenham relação com o mandato. Para isso, ele deve ser denunciado pelo PGR (procurador-geral da República), Augusto Aras. É necessário ainda o aval da Câmara dos Deputados para que ocorra o julgamento pelo STF (Supremo Tribunal Federal).
Aras tem adotado uma postura considerada omissa diante das condutas do presidente.
Se perder o foro privilegiado, novas ações contra Bolsonaro poderão ser movidas por procuradores ou promotores pelo país, a depender da natureza do crime.
Na esfera cível, onde o presidente não tem foro, a reportagem identificou, a partir de ferramenta da empresa Digesto para consulta de processos públicos tribunais em primeira instância, dez processos por danos morais e por condutas relacionadas à pandemia em que Bolsonaro foi alvo direto no decorrer do mandato.
Em dois deles, houve condenação por danos morais —caso da ação do Sindicato do Jornalistas do Estado de São Paulo por ataques reiterados contra profissionais, julgada em primeira instância, e dos ataques de cunho sexual feitos contra a repórter da Folha Patrícia Campos Mello, com condenação confirmada em segunda instância.
Oito processos tratavam do desrespeito ao isolamento social recomendado pela OMS (Organização Mundial da Saúde), mas acabaram extintas sem julgamento.
A realização de motociatas em 2021 e a declaração em rede nacional no dia 24 de março de 2020, em que o presidente comparou a Covid-19 a uma “gripezinha” e pediu a volta à normalidade, são exemplos que motivaram pedidos de liminares que foram negadas.
A advogada Marina Coelho, presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), afirma que as vias de responsabilização do presidente durante o mandato, por crimes comuns ou de responsabilidade, misturam questões jurídicas e políticas, tornando o quadro mais complexo.
“Se a gente considera juridicamente, a gente tem elementos para dizer que há uma necessidade de se investigar a conduta do presidente principalmente no contorno das questões ligadas à pandemia”.
Condutas de Bolsonaro já motivaram diversas representações à PGR.
Em outubro, a CPI da Covid pediu o indiciamento do presidente por diversos crimes comuns na pandemia, como causar epidemia e emprego irregular de verba pública, mas a apuração preliminar aberta ainda em 2021 não avançou.
Também foram apontados prática de crime contra a humanidade, previsto pelo Estatuto de Roma, e crimes de responsabilidade.
No caso de impeachment, o professor de direito constitucional Rodolfo Viana, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), diz que os processos serão arquivados se não houver reeleição, pois a perda do cargo seria a sanção máxima. A essa altura do mandato, ele considera difícil que uma ação prospere.
“Estamos às vésperas de uma campanha eleitoral e, ainda que haja qualquer pedido extra, é muito pouco provável que isso tramite na Câmara dos Deputados”, diz.
Para a professora de direito penal da USP Helena Lobo, que integrou o grupo de especialistas que formulou o parecer jurídico para embasar o relatório final CPI da Covid, há um acúmulo de indícios de crimes de Bolsonaro.
“Essa responsabilização não vem sendo promovida sobretudo por conta das pessoas que ocupam os cargos institucionais que são necessários para promover isso, que são o presidente da Câmara e o procurador-geral da República, muito embora o PGR formalmente esteja fazendo a investigação.”
Sem o foro, ela avalia que o quadro pode mudar. “Pode haver uma mudança de paradigma porque aí a gente vai ter muito provavelmente uma série de promotores e juízes que vão poder analisar esses casos e aí a gente vai ter inclusive opiniões diferentes sobre ele.”
Com a perda de prerrogativa de Aras, o advogado criminalista Ricardo Gloeckner, professor de pós-graduação em ciências criminais da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), acrescenta que também seria possível revisar eventuais arquivamentos.
“Um promotor de primeiro grau que decida não denunciar autoriza que o próprio Ministério Público revise essa decisão de arquivamento, diversamente do ato do Procurador-Geral. Como não há um cargo superior, a palavra dele é final.”
Essa alteração pode mudar o destino de inquéritos contra o mandatário que forem concluídos até o final do ano.
Em junho, o ministro Alexandre de Moraes prorrogou os inquéritos sobre a falsa associação feita pelo presidente de que a vacina contra a Covid-19 elevaria o risco de contrair o vírus da Aids e por organização criminosa, por atacar o sistema eleitoral.
Há divergência sobre se as representações feitas até o momento à PGR podem ou não ser redistribuídas, mas os autores podem repedir os pedidos a outras instâncias do Ministério Público caso ele não seja reeleito.
Em tal cenário, Bolsonaro também pode ser alvo de pedidos de investigação feitos por familiares de vítimas da pandemia na Justiça comum, embora o assunto seja juridicamente controverso.
“O cidadão sempre vai poder ir à autoridade para pedir que se investigue, mas para isso virar um processo tem que ter viabilidade jurídica, que quem vai decidir é o Ministério Público. Precisa ter autoria e materialidade e nesse caso eu vejo que é bem difícil de conseguir”, diz Coelho (IBCCrim), citando que a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) já apresentou pedido de responsabilização nesse sentido.
A advogada criminalista Juliana Sanches, coordenadora do IBCCrim no Rio de Janeiro e do IDPN (Instituto de Defesa da População Negra), afirma que as condutas de Bolsonaro são graves, mas ainda não há clareza sobre como a Justiça deve se comportar em relação às vítimas da pandemia.
“Certamente mesmo depois das próximas eleições, independentemente de reeleição ou não, essas pessoas poderiam acessar a Justiça, mas tem muita coisa a ser investigada ainda. Precisamos de mais respostas concretas do próprio Judiciário para saber como indivíduos poderão ir atrás de ter direitos”, diz.
Mesmo sem o foro especial, a avaliação é que dificilmente Bolsonaro seria preso pelas acusações já feitas contra ele. Isso, porém, pode mudar.
Caso descumpra um resultado desfavorável das urnas e incite a população, a exemplo do que fez o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump no episódio da invasão do Capitólio, Gloeckner (PUC-RS) diz que Bolsonaro pode responder por crime contra o Estado Democrático de Direito e —com base na teoria do domínio do fato, usada no mensalão— por condutas de apoiadores.
“Poderia, por exemplo, ser responsabil izado por eventuais lesões corporais e homicídios que aconteceram numa tentativa de invasão”, diz.