Logo após a eleição do presidente Jair Bolsonaro, em 2018, convencionou-se dizer que uma onda conservadora havia varrido o Brasil. Três anos e meio depois, a pesquisa de opinião pública anual “A cara da democracia” revela duas pistas da cabeça do eleitorado: opiniões majoritariamente de direita, conservadoras ou “linha-dura” — cada vez menos envergonhadas — convivem, pontualmente, com visões de mundo mais vinculadas à esquerda, aos direitos humanos ou à diversidade. E mostra ainda o alcance na sociedade brasileira de um conjunto de pautas “conspiratórias” que emergiram do submundo digital na última década.
Conforme mostram os dados divulgados por O Globo, a respeito de temas polêmicos os dois grupos se dividem em respostas mais à direita e à esquerda, e os segmentos sociais ajudam a entender esses movimentos. Na autodeclaração dos entrevistados a partir de grupos em uma escala de 1 a 10, a direita hoje representa praticamente o dobro da esquerda (30% a 16%), e os temas polêmicos refletem essa divisão.
Para pesquisadores responsáveis pelo levantamento, ligados às universidades UFMG, Unicamp, UnB e Uerj, as hipóteses por trás dessa convivência entre opiniões extremadas de um lado e em transição do outro ainda precisam ser investigadas, mas sinais já vêm sendo seguidos.
— Mulheres tendem a ser menos conservadoras, e este é um foco para análises sobre transições nos rumos das pesquisas a partir de respostas a temas polêmicos como os que investigamos neste levantamento — explica Oswaldo Amaral, diretor do Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop) da Unicamp.
Na redução da maioridade penal (no geral, 70% a favor e 25% contra), tanto homens (74%) quanto mulheres (67%) têm percentuais semelhantes em prol de punições para infratores menores de idade. A situação é semelhante no recorte por renda, com 68% a favor (até dois salários mínimos), 72% (dois a cinco) e 74% (mais de cinco), o que configura um tema de amplo apoio popular. O mesmo ocorre sobre a legalização do aborto, com recortes de sexo e renda rejeitando a medida sem variações.
Novos valores
No entanto, a adoção de crianças por casais do mesmo sexo mostra um outro, e crescente, lado. Em 2018, 52% eram contra adoções por gays e 37% a favor. Após os anos sob Bolsonaro, esse resultado se inverteu para 39% contra e 56% a favor. Na segmentação por região, chama a atenção que o Norte é a que registra a taxa mais baixa a favor da adoção (46%), enquanto o Sudeste, a mais alta (62%). As mulheres são ampla maioria nesse assunto: 64% aprovam, enquanto 47% dos homens são favoráveis.
Tema caro ao presidente, a militarização das escolas públicas tem amplo apoio no Centro-Oeste (68%) e menos no Sudeste (52%), o que mostra a força da pauta vinculada à direita. Em contraponto, o casamento civil de pessoas do mesmo sexo demonstra mais simpatia entre entrevistados (49% a favor e 44% contra), mesmo com um longo caminho pela frente na luta por direitos iguais.
Feita pelo Instituto da Democracia (IDDC-INCT), a pesquisa entrevistou presencialmente 2.538 eleitores em 201 cidades em todas as regiões do país entre os dias 4 e 16 de junho, e foi financiada pelo CNPq e Fapemig, com margem de erro total de 1,9 ponto percentual, e índice de confiança de 95%.
Nos últimos três anos e meio sob Bolsonaro, a identificação do país com a direita cresceu significativamente segundo a série “A cara da democracia”. Como qualquer experimento em opinião pública, a forma como a pergunta é feita ou o método de contabilizar um posicionamento ideológico pode trazer resultados diferentes. Nessa pesquisa, o entrevistado poderia escolher de 1 (esquerda) até 10 (direita). Aproximadamente um quinto dos eleitores (18%), desde 2019, constantemente escolhe o número 10, o extremo da direita.
Por outro lado, os que se consideram totalmente de esquerda e escolheram o 1 oscilaram de 11% a 9% — a metade da direita, deixando uma pergunta que os estrategistas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva devem responder: como liderar as pesquisas de opinião com menos eleitores se declarando de esquerda?
Como a construção do que é ser de direita ou esquerda faz parte do dia a dia político e seus significados, instáveis, sofrem alterações ao longo do tempo, há métodos que buscam medir ideologia a partir do cruzamento de opiniões que dividem a sociedade. Já nesta pesquisa, que usa somente a autodeclaração, é possível verificar respostas confirmando uma direita convicta sedimentada, mas também outros resultados que mostram avanços claros em pautas pró-democracia.
Opção pela democracia
Apesar de estridente, o movimento político que apoia o presidente e que por vezes cobra o fechamento do Supremo Tribunal Federal é minoria quando a opção entre democracia ou um sistema autoritário de governo está em jogo: 59% dos brasileiros disseram aos pesquisadores preferirem a democracia a qualquer outra forma de governo, enquanto 15% afirmam que, “em algumas circunstâncias, uma ditadura pode ser preferível”.