A Folha preparou uma matéria especial contando detalhes sobre a saga da paraibana Silvana Pilipenko, que chegou ao Brasil no último domingo (10) fugindo da guerra na Ucrânia após passar dias sem conseguir contato com a família no Brasil e ser considerada desaparecida.
Silvana estava em Maripuol, uma importante cidade portuária da Ucrânia considerada um dos principais alvos de ataques pela Rússia.
Para a reportagem, a paraibana contou detalhes sobre o que viveu e disponibilizou imagens de seu acervo pessoal.
Leia também: João Azevêdo recebe paraibana que fugiu da Ucrânia e reafirma apoio do Governo do Estado
Leia também: Paraibana que estava na Ucrânia consegue sair da zona de ataques com marido e sogra
Confira a reportagem:
““Dias de terror.” Essa é a definição da brasileira Silvana Vicente, 53, para o período em que viveu numa região da Ucrânia duramente afetada pelos ataques sofridos pelo país desde o início da invasão russa.
“Tudo isso que vivemos é o terror causado pela guerra. A gente despertou e, de repente, tudo estava de pernas pro ar, instável, demolido, com bombas para todos os lados e ninguém sabia qual direção seguir nem quando tudo acabaria”, diz Silvana à BBC News Brasil.
Ela permaneceu cerca de 25 dias sem contato com a família, devido à falta de energia elétrica e de internet na cidade de Mariupol. A brasileira, o marido, o ucraniano Vasil Pilipenko, e a sogra dela moravam na importante cidade portuária ucraniana que foi atacada desde o início do conflito com a Rússia.
Desde o começo da guerra, a vida de Silvana mudou completamente no país do Leste Europeu. Ela teve parte do apartamento atingida por uma bomba e precisou improvisar uma janela para se proteger do frio intenso junto com a família. Além disso, faltavam itens básicos, como alimentos e até mesmo água.
O período foi marcado por uma rotina de incerteza. “Tudo era difícil, mas a sobrevivência era a nossa maior preocupação”, conta. Em meio à tragédia, a brasileira quis registrar alguns momentos com seu celular, para mostrar as dificuldades enfrentadas na região. “Eu buscava formas de carregar o celular, no meu computador ou no do meu esposo. Fazia as fotos e desligava completamente para economizar”, diz. Ela compartilhou algumas dessas fotografias com a BBC News Brasil.
O COMEÇO DOS ‘DIAS DE TERROR’
Silvana ouviu os primeiros impactos da guerra logo no início dos ataques russos, em 24 de fevereiro. “Eu lembro que até a noite de 23 de fevereiro não havia nada, mas logo na manhã do dia seguinte recebemos a ligação de uma prima do meu marido, que é ucraniana, e ela avisou: a guerra chegou aí”, conta a brasileira.
“Assim que ela avisou, a gente começou a notar o barulho dos tiros de canhões. Eu e meu marido nos levantamos assustados, porque até o dia anterior a gente achava que o [presidente russo] Vladimir Putin não levaria a guerra adiante“, acrescenta Silvana.
Os ataques começaram em uma área distante do apartamento de Silvana. “Os bombardeios iniciais aconteceram em uma região de fábrica na cidade”, diz. A partir de então, a brasileira e os familiares passaram a conviver com o constante barulho de explosões.
Mariupol se tornou um dos principais alvos da Rússia em virtude da posição estratégica no mapa da Ucrânia. Se dominada, a cidade ajudará os russos a formarem uma espécie de corredor ligando as duas áreas separatistas da região de Donbass até a península da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014. Com esse grau de controle, os russos teriam acesso facilitado tanto ao mar de Azov quanto ao mar Negro.
Em poucos dias, Silvana começou a enfrentar os impactos do conflito. Nos mercados, as prateleiras ficaram cada vez mais vazias, e havia dificuldades até mesmo para encontrar água potável.
A cidade também começou a sofrer problemas no abastecimento de gás e de energia elétrica, e havia dificuldades para acessar a rede de telefonia da região. Mesmo com as dificuldades, a brasileira e o marido optaram por permanecer na Ucrânia para proteger a sogra dela, Iulia Pilipenko, que é idosa e possui uma saúde frágil. “Seria quase impossível tentar se aventurar a sair da cidade com ela”, explica.
No começo de março, Silvana fez o último contato com a família por meio da internet. Pouco depois, não conseguiu mais nenhum tipo de conexão. Durante semanas, ficou incomunicável. “No dia 2 [de março], falei com a minha família e fiz um vídeo contando como estava a situação. Pouco depois, a energia elétrica da região foi cortada totalmente”, diz.
No dia seguinte, conta Silvana, o gás também foi cortado, e o abastecimento de água ficou cada vez mais precário. “A água que chegava era muito gelada e começou a vir preta, não dava para beber ou cozinhar, a gente só usava para dar descarga”, detalha.
AS DIFICULDADES NA LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA
No apartamento em Mariupol, a situação ficava cada vez mais difícil. Silvana e o marido se preocuparam principalmente com a sogra dela, que precisa de diversos remédios para cuidar dos problemas de saúde.
“Ela começou a racionar remédios para durar mais, porque as farmácias da região tinham sido saqueadas”, detalha a brasileira. Dias após perder a comunicação com os familiares, Silvana viveu um dos momentos mais difíceis na Ucrânia: uma explosão nas proximidades do prédio dela.
“Por volta do dia 6 [de março], a explosão de uma mina atingiu o nosso prédio. Até então, os ataques ainda estavam na área das fábricas, mas como essas minas têm uma força muito grande, acabaram atingindo a região do prédio também”, conta. O impacto da explosão, diz Silvana, estilhaçou os vidros das janelas de muitos apartamentos do prédio, inclusive o dela. “O prédio todo foi prejudicado”, diz.
Sem o vidro da janela, ela precisou improvisar para amenizar o frio, de cerca de -5 °C. “Coloquei um plástico de construção na janela. Enquanto havia o bombardeio lá fora, eu ajustava o plástico. Meu esposo falava: ‘Sai daí, senão você vai ser atingida’. Mas se eu não fizesse isso a gente não aguentaria o frio”, conta. Posteriormente, ela usou pregos para fixar o plástico na janela.
“Ainda assim, fazia muito frio. O frio foi uma das partes mais difíceis de tudo isso, mas decidimos continuar no apartamento porque não havia outra escolha. Se a gente saísse dali, os bombardeios continuariam da mesma forma. Nossa casa era o lugar mais seguro para a gente”, declara a brasileira.
A intervenção na janela foi somente uma das adaptações que Silvana fez para sobreviver.
Sem água, ela precisou recorrer a um rio em uma região perto da sua casa, onde dezenas de pessoas também sofriam com a falta de água e se acumulavam em filas.
“A gente buscava água em dias alternados. Só tínhamos dois galões de cinco litros e três de três litros. O maior medo era o caminho para o rio, porque no trajeto havia algumas áreas que já tinham sido atingidas por ataques, e a gente tinha medo que houvesse novos ataques ali”, diz Silvana.
E diante da falta de gás, ela e os vizinhos começaram a cozinhar com lenha, que buscavam na região, em um fogão improvisado em frente ao prédio em que morava. Enquanto faziam o alimento, precisavam ficar atentos a qualquer barulho de explosão nas proximidades.
Silvana e os parentes faziam uma pequena refeição por dia, além de tomar café puro pela manhã. “Quando tinha pão, a gente comia aos poucos”, diz. Segundo ela, o marido perdeu 13 quilos em menos de um mês.
Para enfrentar as dificuldades, os moradores do prédio de Mariupol tentavam se ajudar por meio de troca de alimentos ou água. “A gente dividia as coisas, conforme a necessidade do outro. É um povo muito forte e esperançoso de que a guerra logo vai acabar”, afirma.
As tropas russas avançavam cada vez mais. Aos poucos, diz Silvana, o horror da guerra passou a fazer parte da vida deles. “Nosso maior medo era do ataque dos aviões, porque o impacto era muito grande. O nosso prédio tremia com o impacto das bombas. Uma casa explodiu a poucos metros do nosso prédio.”
Nas ruas, o cenário de guerra assustava a todos. Era possível avistar carros e casas destruídos ou até mesmo corpos de pessoas atingidas pelos ataques. “Eu nunca vi um corpo e tinha muito medo de avistar algum, mas o meu marido viu alguns. Se eu visse, ficaria muito abalada e desabaria”, diz.
Silvana diz que as cenas mais chocantes que presenciou foram os túmulos improvisados. “As pessoas não tinham como enterrar o familiar no cemitério, então abriam um buraco na calçada, colocavam o corpo, a cruz e pronto. Faziam isso para não deixar o morto exposto na rua com tanta gente passando”, detalha.
Em meio ao cenário de destruição, Silvana se preparou para o pior. “Aprendi a ser forte e a controlar o medo. Eu não tinha mais tanto medo, muito menos pânico da morte. Me preparei emocionalmente para morrer e orava para que Deus confortasse meu filho e a minha família. Eu dizia: ‘Se o Senhor quiser me tirar daqui, que assim seja'”, relembra.
O RESGATE
No fim de março, um ucraniano que morava em Mariupol foi ao prédio de Silvana e avisou que levaria a família dela para fora do país em seu carro. “Ele chegou e disse: ‘Vocês têm 15 minutos para pegar o essencial e os documentos’. E tivemos que sair às pressas”, relembra a brasileira.
O homem, que morava na região e também queria deixar o país, foi pago pelo filho de Silvana e Vasil, o marinheiro mercante Gabriel Pilipenko, 26. Gabriel, assim como outros familiares, vivia a angústia da falta de informações sobre Silvana, Vasil e Iulia. A cada nova notícia sobre ataques a Mariupol, o desespero do rapaz e de seus parentes aumentava mais.
Para conseguir se dedicar à busca pelos pais, Gabriel deixou o emprego em uma embarcação em Taiwan e foi para a Alemanha. Ele chegou a cogitar ir para a Ucrânia, mas desistiu em razão dos riscos.
Ao serem resgatados, Silvana, Vasil e Iulia foram levados pelo ucraniano tendo que passar pelo território dominado pelos russos, onde tiveram o veículo revistado diversas vezes. Posteriormente, chegaram à Crimeia, onde ficaram alguns dias enquanto aguardavam um passaporte de emergência para Iulia. Depois, seguiram para Moscou, receberam apoio da embaixada brasileira e conseguiram as passagens aéreas.
Primeiro, pegaram um voo para Dubai e depois seguiram para o Brasil. Por fim, desembarcaram no domingo (10) em João Pessoa (PB), cidade natal de Silvana e onde a família dela mora. Silvana e Vasil ainda não reencontraram o filho, que conseguiu um emprego na Alemanha e permanece no país europeu.
Em solo brasileiro, Silvana pensa em recomeçar, mas agora enfrenta outras dificuldades. “Estamos no meu apartamento, que estava fechado há anos. A gente deixou tudo para trás, então nossa principal dificuldade é financeira. Viemos para cá só com a roupa do corpo mesmo”, diz Silvana.
Ela e o marido estão desempregados e contam com a ajuda de familiares de Silvana para se alimentar. “O meu esposo [que é marinheiro mercante] tem um ótimo currículo, mas infelizmente isso dificulta para que ele ache um emprego facilmente. Mas acredito que logo ele estará empregado”, afirma Silvana.
“O governo da Paraíba está dando suporte médico e exames e está tentando achar trabalho pro meu esposo. Temos nossas despesas, como comida, e não temos suporte para isso, e isso tem sido a parte mais difícil atualmente”, acrescenta. O futuro ainda é completamente incerto para Silvana. Sobre os próximos meses, ela afirma que seu principal desejo é o fim da Guerra da Ucrânia. “Me sinto culpada por ter deixado para trás tantas pessoas que compartilharam o terror da guerra com a gente”, lamenta.
Quando o conflito terminar, ela pretende cumprir a promessa feita à sogra, e elas, junto com Vasil, retornarão à Ucrânia.”