Longe do estéril turbilhão da rua, Rodrigo Antônio Monteiro escreve. Detido no Complexo Penitenciário do Serrotão, em Campina Grande (PB), o detento de 42 anos elabora cartas para quem não sabe ler e escrever, tal como a personagem de Fernanda Montenegro no filme “Central do Brasil”. Mineiro de Belo Horizonte, Rodrigo estudou em escolas privadas. Sempre teve roupas boas, objetos caros e amigos em bairros nobres onde morou. Terminou o ensino médio sem reprovações e fez cursos de qualificação em logística, contabilidade, instalação de software.
De acordo com a matéria originalmente publicada pelo Uol e assinada pelo jornalista Marcelo Andrade, o detento nunca foi induzido por nenhum colega a roubar, mas sentiu vontade de praticar furtos ainda na época da escola. Aos 17, fez o primeiro assalto na rua, e usou uma caneta como arma. A vítima, uma mulher, correu. Foi preso pela primeira vez, em 2004, ainda em Minas Gerais, por ter cometido assaltos. Depois de cumprir parte da pena, esteve em liberdade até 2009, quando voltou para a cadeia por ter participado de roubo de cargas, assalto a bancos, pedestres, casas e comércios na cidade de João Pessoa. Em um ano, ele jura ter cometido pouco mais de mil roubos. Ainda falsificou documentos, abriu empresas de transporte e lojas de peças automotivas. “Me aproveitei da possibilidade de ter uRG em cada estado e fazia isso por onde passava. Criava uma nova certidão de nascimento e dava entrada num novo documento de identidade”, conta ele, na biblioteca onde costuma servir de escrivão.
O espaço da biblioteca é pequeno. Nas estantes, há livros doados por entidades e comprados pela Secretaria de Administração Penitenciária da Paraíba. Quem passa vê quem está ali estudando, porque não há porta. Duas mesas de estudo são cercadas por cadeiras azuis, dessas de escritório. Há livros didáticos, romances, autoajuda e biografias, e clássicos da literatura brasileira como “Dom Casmurro”, “Senhora” e “A Moreninha”.
Rodrigo gosta de ler de tudo, mas prefere histórias de vida. Diz que busca exemplos e feitos de outras pessoas nas biografias. Quando não escreve na biblioteca, faz o serviço nas celas. Presos de outros pavilhões também o procuram para que as cartas sejam escritas.
Na cadeia, é um ouvidor e porta-voz de notícias e saudades. Há mais de um ano, os detentos não recebem visitas devido aos protocolos de segurança contra o coronavírus. A carta é o meio e a mensagem. “Se um parente, esposa ou amigo ler uma carta dessas, pensa que não é mais a mesma pessoa que conheceu. Eles estão sempre arrependidos.”
Ele conta ter ouvido o relato de um preso que batia na esposa quando vivia com ela. A mulher foi violentada durante uma década. “Estava preso pela Lei Maria da Penha e escrevia para a mulher dizendo que tinha mudado”, diz.
A vacina chegou
A reportagem de TAB chegou à maior unidade prisional do interior do estado em dia de vacinação contra a covid-19, motivo de ansiedade entre os 1.100 apenados do presídio que só tem capacidade para 280.
A notícia da vacina está em uma das cartas que vimos Rodrigo escrever com caligrafia organizada, em letras de forma, para um colega da prisão. Joalison Bezerra, 31, chegou à penitenciária há 11 anos quando foi preso por tráfico com 50 gramas de pedras de crack. Tímido, Joalison contava a notícia à mãe, Lourdes, que vive em Brasília.
Sem saber escrever, recorre a Rodrigo quando precisa encurtar a saudade com as palavras. Atento, com os olhos focados na folha de papel-ofício, Rodrigo transcreve a mensagem. No texto, o detento também conta à mãe que está se alimentando bem e faz promessas, mais uma vez, de que vai se afastar da criminalidade quando sair da prisão.
Foi com uma dessas missivas que Rodrigo ajudou Joalison a conhecer sua atual esposa, com quem mantém um relacionamento há seis anos. A mãe passou a mostrar as cartas recebidas para uma vizinha, que resolveu conhecer o detento. Mudou-se para Campina Grande para participar das visitas íntimas e engravidou. A criança já tem 3 anos.
O pedido de perdão é assunto unânime. Em quase todas as cartas, os apenados pedem desculpas a alguém. Esse pedido de perdão está na voz embargada de Júnior Soares da Silva, 30, quando narra o texto que será enviado à tia, Petrúcia.
Ele fala dos dias de saudade e da vontade de revê-la em Arara, pequena cidade do interior paraibano, onde morava quando foi preso por tráfico. Semanalmente, Rodrigo escreve as cartas para o colega que não estudou e com quem divide cela no pavilhão 1A do Serrotão. São mais 4 pessoas, junto deles, na cela.
Chegam por carta respostas de parentes, esposas, filhos e ex-mulheres. Também há cartas que ficam sem resposta. Rodrigo chorou, tempos atrás, quando leu a correspondência que uma ex-esposa enviou a um dos presos do pavilhão. A mulher contava que já havia refeito a vida e encontrara outro amor. Desejava que o ex-marido fosse feliz.
Rodrigo preferiu mentir. Aproveitou que o detento não sabia ler e contou apenas que a esposa o esperava após a liberdade. “Não dava pra contar. O rapaz é apaixonado demais por essa mulher. Sonha em reencontrá-la quando sair daqui. É melhor que ele descubra lá fora.”.
O escritor não interfere na fala dos presos, mas não transcreve exatamente o que eles falam. Escreve rápido, pausa, coloca as mãos na cabeça, pensa e volta à escrita.
Corrige as palavras erradas porque é apaixonado pela língua portuguesa desde criança. Devorava livros e sempre gostou de fazer redações. Nas cartas do escritor amador aparecem palavras rebuscadas e difíceis. Ele substitui algumas ditas pelos presos e adiciona expressões que não foram faladas. “É uma maneira de passar mais emoção”, diz ele.
Rodrigo já escreveu centenas de cartas. Começou a fazer isso em 2014, na Penitenciária de Segurança Máxima de João Pessoa, quando percebeu que alguns apenados não recebiam visitas de familiares, permaneciam calados e sentados no canto de uma parede, pensativos. Eram analfabetos. Rodrigo escreve as cartas à noite por causa do silêncio dos pavilhões e da insônia que alguns presos recém-chegados enfrentam. Alguns não conseguem parar de pensar na família e choram bastante, com medo.
O detento lembra que já escreveu uma carta de quase dez páginas a pedido de um preso, endereçada ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Passou uma madrugada inteira acordado, ouvindo o apenado. Anos depois do envio, o detento recebeu uma resposta e conseguiu ser ouvido.
Aprovações no Enem
Rodrigo é curioso, atencioso e antenado. Fala de política, de covid-19. O mesmo traquejo, instrumental na criminalidade, carregou para a prisão. Em 2014, ingressou no projeto de educação nas unidades prisionais para ser aprovado no Enem. Na primeira tentativa, passou para o curso de Produção Sucroalcooleira na UFPB (Universidade Federal da Paraíba).
No ano seguinte, foi aprovado para o curso de pedagogia. Ainda alcançou o primeiro lugar no curso de biblioteconomia da UFPB, com 591,89 pontos na modalidade do Enem para Privados de Liberdade. Na última tentativa, Rodrigo também alcançou a nota máxima de 680 pontos no curso de letras também da universidade federal. Em 2020, 42 apenados foram selecionados pelo Sisu como cotistas no Exame Nacional do Ensino Médio.
A aprovação não garante a saída de Rodrigo nem de qualquer outro detento para estudar nas universidades onde conseguiram aprovação, já que não estão no regime semiaberto. A participação em projetos de educação, como o preparatório para o Enem, reduz a pena em 133 dias em um ano, caso sejam aprovados. A Secretaria de Administração Penitenciária da Paraíba quer permitir que os presos selecionados pelo Sisu assistam às aulas remotas das universidades e institutos federais que tenham adotado o sistema por causa da pandemia.
Rodrigo aguarda a decisão das apelações que fez à Vara de Execuções Penais para migrar para o regime semiaberto ou para uma condicional. A pena total do detento é de 40 anos e dois meses. Ele espera sair da penitenciária bem antes do prazo, porque quer contar a história em um livro. Quer ser autor de sua própria biografia.