Por Airton Florentino de Barros*
Durante os debates dos congressistas constituintes, preparatórios para a formulação da Constituição Federal de 1988, cogitou-se acerca da criação do chamado controle externo do Judiciário e do Ministério Público, a ser possivelmente exercido por conselhos nacionais. Na oportunidade, concluiu-se, contudo, que a manutenção da independência institucional era de superior relevância e exigia maior cautela na discussão do tema.
Sábia deliberação. O texto original da CF devia mesmo deixar claro, como deixou, que nenhum controle interno ou externo haveria de interferir na atividade fim tanto do Judiciário como do Ministério Público.
Não demorou, contudo, para que, já na elaboração das Leis Orgânicas do Ministério Público, agentes de diversos segmentos, inclusive da própria instituição, tentassem mitigar a independência funcional do Ministério Público, projetando, por exemplo, a hierarquização institucional, a começar pela concentração de suas atribuições com o procurador-geral nos casos que envolvessem agentes ou interesses do governo da ocasião.
Correntes políticas institucionais de oposição, minúsculas em número, mas gigantes na coragem, força e mobilização, sobretudo em São Paulo, partiram então para a defesa da referida independência funcional que, confundida hoje por alguns indevidamente como privilégio pessoal, é, na verdade, importante prerrogativa institucional. Reuniões, convocações de assembleia de classe, protestos, panfletos, abaixo-assinados, viagens a Brasília foram necessários para evitar a redução do MP a mera repartição subalterna da burocracia governamental.
O certo é que dita independência funcional faz do representante do Ministério Público agente político, dando-lhe por isso a prerrogativa de, numa investigação ou num processo judicial, concluir pelo sim ou pelo não, pela denúncia do indiciado ou pelo arquivamento do inquérito, pela condenação ou absolvição do acusado, sem a menor possibilidade de ingerência do poder político ou econômico, o que se apresenta de fundamental importância para que o império da lei, fundamento do regime republicano, se imponha a todos indistintamente sem qualquer discriminação.
Não é sem razão que, desde há muito tempo, mesmo antes da inclusão formal da independência funcional no texto expresso da lei e da CF, contam os membros do MP com a irredutibilidade de vencimentos e a inamovibilidade como instrumentos asseguradores da mencionada autonomia. Assim, se um promotor de Justiça sabidamente severo, por exemplo, conduz determinada acusação criminal contra alguém com grande influência política, não pode ser removido pelo governo ou por chefia institucional a ele vinculada. Se um secretário de Fazenda se sente incomodado por um integrante da instituição, não pode, como represália, promover artifícios para a redução de seus vencimentos.
Como é sabido, tem a instituição o dever de perseguir a responsabilização criminal, administrativa e civil de quem pratica ilicitudes em prejuízo da coletividade, devendo cumprir essa relevante função com absoluta isenção ou, na expressão de Dante, sem apetites pessoais. De fato, não pode reclamar abusivamente a imposição de sanções aos infratores, cabendo-lhe agir no limite da justa medida, sem pedir nem mais do que a lei autoriza, nem menos do que a lei exige.
A verdade é que, buscando o aperfeiçoamento institucional, acabou o Congresso Nacional, por meio da EC 45, de 2004, por instituir o Conselho Nacional do Ministério Público, que, entretanto, ao invés de se restringir, como devia, a coibir irregularidades de ordem administrativa e financeira e, excepcionalmente, punir infrações disciplinares de agentes da instituição, parece ter resolvido, de um lado, restabelecer a lei da mordaça em relação às representações contra irregularidades e, de outro, interferir na atividade fim da instituição, não se importando com o comprometimento da sagrada e consagrada prerrogativa institucional, a chamada independência funcional.
De fato, em ao menos duas ocasiões recentes, em procedimentos, aliás, ainda em andamento, o CNMP não agiu como devia.
Ex-procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo, no efetivo exercício da função de procurador de Justiça, conforme se apurou, teria passado a exercer, concomitantemente, função de direção de instituição superior de ensino, contra expressa disposição do artigo 2º, §2º, da Resolução nº 73/2011 do próprio CNMP (“O cargo ou função de direção nas entidades de ensino não é considerado exercício de magistério, sendo vedado aos membros do Ministério Público”).
Promotores e procuradores de Justiça paulistas formularam então pedido de providências ao CNMP, que, todavia, por decisão monocrática do conselheiro relator, por absurdo, além de não adotar qualquer medida para a suspensão da referida cumulação indevida de funções, ainda impôs multa aos signatários da representação por litigância de má-fé, em razão da oposição legítima de embargos de declaração, sanção processual que nem tem incidência legal na hipótese.
Outro exemplo do que o CNMP nunca deveria fazer é o da indevida perseguição a promotor de Justiça de Defesa do Meio Ambiente no Estado do Mato Grosso que, ao promover, no legítimo exercício de suas atribuições legais, mais de vinte ações civis públicas contra proprietários de terra no importantíssimo Parque Nascentes do Rio Paraguai, para fazer cessar o uso abusivo e ilegal de agrotóxicos, entre outras condutas prejudiciais ao meio ambiente do Pantanal brasileiro que, aliás, acaba de sofrer uma das maiores crises decorrentes da alteração climática provocada em grande parte pelo desrespeito à proteção da flora nacional, viu-se obrigado a ajuizar algumas dessas ações contra familiares de ministro do STF.
Sucede que provocação da elevada autoridade judiciária pessoalmente interessada no caso submeteu a conduta do promotor de Justiça ao exame disciplinar tanto pela corregedoria estadual, como pela corregedoria nacional que, depois da devida apuração, entenderam legítima aquela atuação institucional.
Entretanto, o CNMP, ao invés de prestigiar a autoridade de sua própria resolução acerca do tema (“Verificada a identidade de objetos e de partes entre ação previamente ajuizada, e posterior procedimento no CNMP, deve o feito ser arquivado”, Resolução 8/2018), preferiu sucumbir à ingerência do mencionado ministro do STF, pessoalmente interessado no caso, reabrindo a apuração e instaurando processo administrativo disciplinar contra o promotor de Justiça, em que pese o visível comprometimento da independência funcional do Ministério Público.
Ora, as novas gerações de integrantes do MP não têm o direito de renunciar a fundamentais conquistas institucionais conseguidas depois de extremamente penosa luta de suas velhas gerações, sob pena de causarem sérios e irreversíveis danos ao interesse de toda a sociedade brasileira.
De se esperar que o CNMP cumpra sua função constitucional de evitar abusos na atividade administrativa e financeira do MP e, em relação a eventuais condutas disciplinarmente puníveis de seus membros, agir apenas excepcionalmente, como no caso de eventual omissão das corregedorias originalmente competentes, sem se esquecer de que, se a ele compete rever processos disciplinares julgados por outras instâncias institucionais (CF, artigo 130-A, §2º, IV), deve fazê-lo sempre de modo a zelar pela autonomia funcional da instituição (inciso I, do mesmo dispositivo constitucional).
Em nenhuma hipótese cabe ao conselho nacional inibir a atuação corajosa e legítima dos integrantes da instituição, no limite do regular exercício de suas competências.
*Airton Florentino de Barros – É advogado, professor de Direito Empresarial, fundador e ex-presidente do MP Democrático.