De janeiro a junho deste ano, oito das 78 mulheres vítimas de violência sexual atendidas em um dos três serviços de referência da Capital se submeteram ao aborto legal. A interrupção da gravidez decorrente de estupro está prevista em lei, mas médicos apontam que a Portaria 2.282/2020 do Ministério da Saúde, editada mês passado, contém pontos polêmicos que podem resultar em retrocesso. Esse foi o assunto de uma audiência promovida pelo Ministério Público da Paraíba, nessa quarta-feira (03/09).
O MPPB quer saber como os serviços estão estruturados, como os profissionais de saúde lidam com a questão e quantos procedimentos foram realizados este ano. A partir dessas informações e da percepção dos profissionais, a Promotoria de Justiça de João Pessoa pode atuar, caso seja necessário, para garantir o acesso das mulheres aos serviços, conforme prevê a legislação.
A reunião foi conduzida pela 48º promotora de Justiça de João Pessoa, Maria das Graças de Azevedo Santos e contou com a participação do presidente do Conselho Regional de Medicina (CRM/PB), Roberto Magliano, e de diretores de hospitais: Eguimar Nivaldo Fernandes Filho, Gleide dos Santos Tomaz e Andrea Correia (Maternidade Frei Damião; Marcelo Braga (Hospital General Edson Ramalho e Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia da Paraíba); Eva Betania Pires Martins (Hospital Edson Ramalho); Terezinha de Lisieux Pires de Andrade (Maternidade Cândida Vargas), além da assessora jurídica dessa última, Neuri Teodoro Lima.
O aborto é permitido no Brasil apenas em três casos: gravidez de risco à vida da gestante; gravidez resultante de violência sexual (Código Penal) e anencefalia fetal (conforme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal). De acordo com Terezinha de Lisieux, só existem três serviços em João Pessoa que realizam atendimento de mulheres vítimas de violência sexual. Segundo ela, na vizinha Recife/PE, todos os serviços públicos realizam o primeiro atendimento para essas mulheres. A Maternidade Cândida Vargas, serviço no qual atua, se tornou credenciado para o atendimento em 2006. Este ano, realizou oito procedimentos após o atendimento de 78 mulheres em situação de violência sexual e, em 2019, 12 entre 152 atendimentos a vítimas de estupros.
Médicos: portaria é um retrocesso
A médica Andreia Correia, representante da Frei Damião, disse que era “um verdadeiro acalanto” saber que o Ministério Público, o CRM/PB e a Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia da Paraíba encontram-se alinhados em defesa da mulher e das meninas. Ela considerou que a portaria do MS é um retrocesso; disse que a Maternidade Frei Damião possui uma equipe multiprofissional para atender mulheres que necessitem de acompanhamento para abortos legais, e que tem as estatísticas dos últimos 10 anos relativas a abortos realizados na maternidade.
O presidente do CRM, Roberto Magliano, que o conteúdo da norma do Ministério da Saúde é visto com preocupação pelo Conselho e que está aguardando o posicionamento do Conselho Federal de Medicina (CFM) para se posicionar oficialmente sobre tema. Ele, no entanto, adiantou que, como médico obstetra, e não em como presidente do CRM, também considera a portaria um retrocesso.
O representante da Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia da Paraíba, Marcelo Braga, disse que a entidade já se pronunciou sobre a portaria. “Sobre a obrigatoriedade da notificação à autoridade policial, essa Comissão defende que a denúncia deva ocorrer apenas por decisão da mulher respeitando-se o direito ao sigilo, à privacidade e à autonomia. A compulsoriedade da denúncia viola esses direitos, bem como impõe a quebra do dever ético de sigilo profissional… Além do prejuízo à necessária relação de confiança em um momento de assistência tão delicado, existem evidências de que esta atitude culmina frequentemente no afastamento da mulher dos espaços de assistência…, tem pouco ou nenhum efeito na condenação do autor do crime…, além de expor a mulher ao risco de retaliação por parte do agressor. Sobre a oferta da visualização do embrião/feto através da ultrassonografia antes do procedimento de interrupção, essa CNE considera prática de tortura, medida com potencial danoso para a saúde emocional e psíquica de uma mulher cuja assistência deveria ser pautada pelo acolhimento e proteção…”, leu trechos da manifestação.
Ao final da audiência, a promotora de Justiça determinou que a Maternidade Frei Damião fosse oficiada para fornecer as informações acerca dos dados sobre abortos necessários/legais realizados no primeiro semestre de 2020, bem como a escala de plantão da equipe multiprofissional responsável por este tipo de atendimento. Esse material, bem como a ata da reunião, será juntado ao procedimento administrativo 002.2020.036043 aberto pela Promotoria para o acompanhamento dos serviços que atendem mulheres vítimas de estupro que se submetem ao aborto previsto em lei e em jurisprudência do STF. A portaria que dita regras para a realização do aborto legal está sendo questionada por entidades, em nível nacional, e pode ser revista pelo MS.