Fábrica de cimento Portland na Paraíba é a primeira da América Latina, segundo estudo do pesquisador do Programa de Pós-graduação em Ciência e Engenharia de Materiais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Alysson Medeiros. As ruínas do edifício industrial, datadas do século XIX, ficam na Ilha de Tiriri, em Santa Rita, na Grande João Pessoa.
O cimento Portland é o tipo de cimento mais utilizado no mundo. É um pó fino, produzido a partir da queima de calcário e argila em um forno, com posterior moagem e adição de uma pequena quantidade de gipsita ou de outras formas de sulfato de cálcio, podendo receber também outras adições. Com a adição de água, endurece, tornando-se uma pasta homogênea com propriedades ligantes.
A confirmação do funcionamento da antiga Fábrica de Cimento da Ilha de Tiriri, resultado da pesquisa de doutorado do Alysson Medeiros, confirma o pioneirismo tecnológico do empreendimento e resgata sua importância histórica. Construída entre 1890 e 1892, a fábrica funcionou por apenas seis meses e encerrou suas atividades. Devido a esse curto período de tempo, havia dúvidas sobre sua efetiva operação, fato elucidado pela pesquisa.
“Eu descobri evidências que comprovam que, de fato, houve atividade na fábrica, que ela produziu cimento de qualidade para o padrão da época. Ainda foi possível reavaliar sua importância histórica para o Brasil e reposicioná-lo entre os países pioneiros na fabricação de cimento do século XIX”, conta Alysson Medeiros.
O autor da tese relata que, quando começou a estudar a história da Fábrica de Tiriri, encontrou algumas informações desencontradas. Por exemplo, se creditava a uma fábrica cubana o pioneirismo dessa atividade na América Latina. Porém, ele descobriu que a fábrica de Cuba – então colônia espanhola – é datada de 1895. Portanto surgiu após a de Tiriri, de forma que estava sendo feita uma injustiça à fábrica paraibana.
No mundo, o Reino Unido era a referência da época na fabricação deste tipo de cimento, além da França e Alemanha, e somente depois o produto começou a ser fabricado nos Estados Unidos. “Para mim, a contribuição da pesquisa é mostrar que o uso correto do método científico, a disponibilidade de equipamentos e corpo técnico capacitado para o seu uso nos permitem fazer pesquisa de ponta, tal qual se faz em instituições de renome nacional ou internacional”, diz Alysson Medeiros.
O estudo, que durou cerca de quatro anos, uniu a pesquisa documental à de campo, com o uso de técnicas forenses e de laboratório, com apoio de especialistas altamente qualificados. Segundo Alysson Medeiros, esta verdadeira força-tarefa foi um dos diferenciais da pesquisa em relação a outros estudos de engenharia ou de materiais cimentícios. “Uma coisa é chegar com frasco de um material para analisar. Outra é você garimpar esse material onde, até então, ninguém sabia onde estava.”, argumenta.
Vestígios recontam história
O trabalho abordou a evolução tecnológica do produto e do seu processo produtivo. De acordo com Alysson Medeiros, sua investigação comprovou a capacidade do método científico de fazer os vestígios das ruínas recontarem a história da fábrica pioneira paraibana.
“Foram utilizadas técnicas de levantamento de dados em campo aplicáveis às Ciências Forenses, que incluíram desde a caracterização das construções mediante fotogrametria aérea – com elaboração de um modelo digital 3D – à busca, identificação e coleta dos vestígios cimentícios essenciais ao estudo”.
No local onde se encontram as ruínas da fábrica, uma área com cerca de nove mil metros quadrados na Ilha de Tiriri, o pesquisador coletou amostras de argilas e de calcário; da argamassa de revestimento e de assentamento de tijolos; de vestígios do interior dos fornos de tecnologia alemã; e do cimento produzido na época.
Em um dos quatro fornos da ruína, Alysson encontrou material suficiente que tornou possível a pesquisa em laboratório, para estudar o processo de fabricação do cimento naquele tempo. O material foi analisado utilizando tecnologia de ponta, no Laboratório de Tecnologia de Novos Materiais (Tecnom). Localizado no Centro de Tecnologia da UFPB, no campus I, em João Pessoa, é um dos que constituem o Instituto UFPB de Desenvolvimento da Paraíba (Idep).
As análises dos vestígios cimentícios e de suas características microestruturais permitiram classificar a fabricação de cimento Portland na ilha, em termos da evolução qualitativa do produto, desvendando o “DNA” dos materiais, explica Sandro Marden, professor do Departamento de Engenharia Mecânica da UFPB, coordenador do Laboratório de Tecnologia de Novos Materiais e orientador da pesquisa.
Sem essa análise, a constatação sobre os exemplares terem constituintes típicos de cimento Portland seria impossível. “Essa verificação requer equipamentos de alta tecnologia como também recursos humanos com formação e experiência específica para as análises em questão”, assevera. Segundo o pesquisador Alysson Medeiros, a realização da pesquisa só foi possível graças ao trabalho em equipe e parceria entre instituições, envolvendo professores e colegas do programa de pós-graduação e da Polícia Federal, da qual é servidor efetivo.
Do mesmo modo, foi imprescindível a colaboração da historiadora Diana Galliza, de moradores do distrito de Nossa Senhora do Livramento, em Santa Rita, e de funcionários de empresa que cultiva camarão na região. “Não se faz um trabalho desse sem um grupo”, pontua Alysson.
O trabalho no Laboratório de Tecnologia de Novos Materiais contou ainda com a expertise dos pesquisadores Antonio Leal, Marçal Lima Filho, Kelly Gomes, Rodinei Gomes, Alexandro Santos, Lucidio Cabral, Bruno Pessoa, Ricardo Costa e William Fernandes. Colaboraram também a professora do Instituto Federal da Paraíba (IFPB) Andressa Vieira e o pesquisador Carlos Azevedo, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (Iphaep).
“Estamos engajados em contribuir com o desenvolvimento regional, com projetos realizados com grandes empresas da região”, afirma o coordenador do Laboratório de Tecnologia de Novos Materiais da UFPB, Sandro Marden. Para ele, a Fábrica de Tiriri é um marco do pioneirismo tecnológico do estado da Paraíba na América Latina e sem ela o polo cimenteiro paraibano poderia não ter sido formado ou ter seu início retardado por décadas.
Além disso, Sandro Marden afirma que estudar como o cimento da Fábrica de Tiriri envelheceu é de grande curiosidade científica, pois ajuda a entender e oferece respostas sobre como será o cimento do futuro, em termos de durabilidade. Alysson Medeiros ressalta que, conhecendo com precisão o período em que a fábrica funcionou – apenas em um curto período de 1892 – sabe-se a idade de fabricação daqueles exemplares com uma precisão de poucos meses. “Isso é fantástico na ciência e torna as ruínas de Tiriri ainda mais especiais para este tipo de estudo”, diz Alysson.
Lenda e política da época
Segundo Alysson Medeiros, o fato de ter experiência na perícia forense possibilitou desvendar o mistério da história da Fábrica de Tiriri. Ele conta que o surgimento do empreendimento industrial era explicado através de uma lenda. De acordo com a fábula, um comerciante português que residia na Paraíba certo dia passeava com seu filho e, ao fixar um cajado na lama da Ilha de Tiriri, teria observado as propriedades cimentícias do material e escolhido o local para a fábrica de cimento.
“Eu sempre desconfiei dessa história porque acho que uma fábrica daquele porte, naquela época, precisava de uma motivação muito mais elaborada, da certeza de que haveria uma jazida, de que poderia fabricar o produto, porque cimento não é só argila”, conta Alysson.
Segundo o pesquisador, diferente da lenda, a história da fábrica é complexa, porque envolve a aprovação da primeira patente de cimento Portland do Brasil, ainda em 1888, e teve a participação de engenheiros do Império, de um grupo de acionistas do Rio de Janeiro e o apoio de políticos paraibanos.
Conforme a pesquisa, a importância da Fábrica de Tiriri é muito maior do que se esperava para um empreendimento que funcionou tão pouco tempo. Ela serviu como um laboratório do que estava por vir, observa Alysson. “Foram convocados, posteriormente, técnicos e empreendedores estrangeiros (franceses e alemães) à Paraíba”.
A fábrica foi explorada por um grupo nacional, a Companhia de Cimento Brazileiro, cujo diretor executivo era um engenheiro gaúcho chamado Luiz Philippe Alves da Nóbrega. O cimento fabricado pelo empreendimento em Tiriri, o Cimento Portland Brazileiro, foi utilizado em construções como a antiga Cadeia Pública de João Pessoa, o revestimento dos antigos reservatórios de água que existiam na Praça João Pessoa e em obras complementares do Teatro Santa Rosa, que já havia sido inaugurado à época.
A pesquisa aponta que a fábrica teria falido por motivos diversos, envolvendo desde problemas técnicos como quebra ou diminuição no ritmo de operação da máquina de moagem, um dos equipamentos da fábrica, a problemas de gestão e de ordem econômica.
Prova cabal
A comprovação do funcionamento da fábrica, por meio de vestígios dos cimentos antigos, foi um dos grandes desafios da pesquisa, informa o professor Sandro Marden. Em princípio, buscaram-se amostras remanescentes dentro do material de colagem, no interior dos fornos. Em certo momento, segundo o orientador do trabalho, foi descoberto o artefato que reforçou que as ruínas eram de uma fábrica de cimento.
“Ao longo da pesquisa, Alysson descobriu um exemplar de barril cheio de cimento que endureceu ao longo dos anos”, conta o professor Sandro. De acordo com Alysson, a madeira do barril apodreceu e se deteriorou ao longo dos anos, restando o cimento petrificado, que quase passou despercebido pelos pesquisadores.
O autor do estudo defende que o sítio que abrange as ruínas da Fábrica de Cimento da Ilha de Tiriri é um bem que atende plenamente aos requisitos necessários para se constituir como parte integrante do patrimônio cultural nacional, devendo, assim, receber o reconhecimento e proteção legais, visando sua preservação.
Alysson afirma que as evidências encontradas e os resultados do estudo permitem alçar o conjunto remanescente a um distinto sítio de Arqueologia Industrial, ainda desprovido de proteção e de reconhecimento como patrimônio cultural do Estado da Paraíba e do Brasil.
A tese já foi acessada por pesquisadores brasileiros e de diversos outros países como Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, Irlanda, Canadá, China, Austrália, Hong Kong e Panamá, segundo informação do sistema da Biblioteca Central da UFPB.