Luiz Mário Guerra
Em 20 de dezembro de 1793, o jornalista parisiense Camille Desmoulins publicou forte crítica ao chamado período do terror, fase mais radical do governo jacobino, pós Revolução Francesa de 1789.
Segundo a publicação, “na França não havia suspeitos, tão somente condenados”. Entre os anos de 1793 e 1794, mais de 16 mil pessoas foram executadas sob a pecha de “traidores da revolução”.
Desmoulins apelou para a criação formal de um comitê de clemência. Em 5 de Abril 1794, o jornalista foi executado.
Como a história registra, as execuções consistiam basicamente em espetáculos de justiçamento. O condenado era levado numa carroça à Praça da Revolução e subia no cadafalso. A guilhotina descia e o povo vibrava, como numa festa. Era perigoso criticar as consequências da revolução. Havia um sentimento generalizado – e ao mesmo tempo paradoxal – de que aquelas prisões, condenações e execuções eram necessárias para a garantia do bem comum.
O grande terror passou, não sem antes consumir seus próprios precursores.
Com isso, o constitucionalismo ocidental do Séc. XIX, influenciado por matizes liberais, operou para garantir a moderação do poder punitivo estatal, num ambiente de república, o que foi feito por meio do processo penal.
A partir de então, na passagem do velho para o Novo Estado de Direito, a maioria das constituições europeias consagraram o princípio da presunção de inocência como pedra de toque do devido processo legal, dispondo, basicamente – e inspirados na Declaração Universal dos Direitos do Homem -, que “todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado”.
A Constituição Brasileira de 1988 avançou, declarando que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Assim, a despeito das prisões cautelares, que servem basicamente para a garantia da ordem pública, da ordem econômica, da conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação lei penal, na atualidade, a prisão aplicada como pena, isto é, a reprimenda estatal como resultado do devido processo legal só pode ser levada a efeito quando não houver mais possibilidade de a sentença vir a ser reformada por órgão jurisdicional de grau superior.
Malgrado a clareza da dicção constitucional, no último dia 07 de novembro, discutiu-se no STF sobre a possibilidade de um acusado vir a ser preso antes de a sentença condenatória transitar em julgado, isto é, antes de ela se tornar definitiva, o que consiste, basicamente, na execução provisória da pena.
Para a corrente que defende a constrição, ao dizer que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, a CF não proíbe a constrição, mas impede que o estado-juiz considere o réu culpado, em caráter definitivo.
O desafio do argumento consiste em superar a contradição ilustrada pela seguinte indagação: como pode o estado conduzir um réu à prisão sem considerá-lo culpado?
No entanto, para além deste argumento, os defensores da execução provisória da pena também alegam que, em razão de os tribunais superiores não se debruçarem sobre provas, o acusado não teria, em tese, como negar o fatos, o que autorizaria o recolhimento ao cárcere.
Ocorre, contudo, que muitas vezes o cerne das discussões não está nos fatos, mas nas consequências dele decorrentes. Isto é, alguém pode, assumidamente, afirmar que praticou a conduta imputada pela acusação, mas que tal fato não constitui delito penal, de modo que mesmo sobrevindo condenações em primeiro e segundo graus, por meio de recurso aos tribunais superiores o condenado pode obter uma decisão absolutória que reconheça que aquele fato – cuja autoria jamais se negou – trata-se de um irrelevante penal ou, por exemplo, de um simples ilícito civil.
A norma se sujeita a interpretação. Isso não se discute. Todavia, o desejo de justiçamento de parte da população não autoriza a flexibilização do unívoco sentido do texto constitucional, de modo a menoscabar princípios, direitos e garantias historicamente conquistados nos terrenos onde a luta contra a tirania estatal foram travadas.
A interpretação do Supremo sobre o texto constitucional não pode jamais variar ao sabor da efemeridade da opinião pública, sob pena de prejuízo à força normativa da Carta. Ademais, num regime de democracia semi-direta, deve se ter em conta que foi a sociedade que escolheu a redação da Carta Magna, o que, ao fim e ao cabo, termina por revelar a volatilidade da opinião pública. Daí o acerto do STF que, assumindo a função de guardião da estabilidade da constituição, por maioria, declarou inconstitucional a execução provisória da pena, reabilitando a liberdade como regra.
A discussão não findará com a proclamação do resultado pela corte. A autorreflexão é típica da democracia. E é salutar que assim o seja. Porém, qualquer indivíduo que titularize ou que pretenda titularizar direitos fundamentais deve, antes e sobretudo, aceitar conviver com a inarredável constatação de que um acusado no âmbito do processo penal ostenta idênticas garantias, por mais repugnante que possa – ou pareça – ser a acusação.
Luiz Mário Guerra é advogado criminalista, sócio do Urbano Vitalino Advogados e procurador do Estado de Pernambuco.