Quando a parte de asfalto acaba, é preciso seguir mais cem metros em uma rua esburacada para chegar à casa simples do pescador Francielio Monteiro, o Hélio de Socorro, de 43 anos, no bairro Janduhy Carneiro, mais conhecido como “bairro das Populares”, na cidade de Pombal, sertão da Paraíba. Uma casa de cinco cômodos, poucos móveis e com a pintura já desgastada abriga o pai e dois dos seus quatro filhos. Do lado esquerdo da porta de entrada, uma imagem de gesso de Jesus crucificado. Em pé, ao lado da imagem, Hélio conta que acaba de chegar do posto do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) da cidade vizinha, onde recebeu a notícia de que a sua aposentadoria foi cancelada. Este era o segundo corte em dois meses. Ele já tinha perdido o benefício do Bolsa Família dos filhos, ficando basicamente sem renda. Com a pesca, só consegue arrecadar de R$ 10 a R$ 30 por semana.
A situação de Hélio não é muito diferente de vizinhos do seu bairro, ou de outros bairros pobres de Pombal, tanto na zona urbana como na rural. Mas é uma situação nova, com cara de passado, destaca reportagem da Agência Pública.
A cidade, que fica a 370 km da capital João Pessoa e tem aproximadamente 30 mil habitantes, já foi escolhida pela ONU para representar os municípios brasileiros na 70a Assembleia Geral, que ocorreu em Nova York em setembro de 2015, como exemplo de desenvolvimento social e superação da pobreza. Na época, a então prefeita Pollyana Dutra (PSB) representou a cidade como um exemplo global de boas práticas. Representantes do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) escolheram Pombal por ser o município brasileiro que chegou mais próximo de atingir os 8 Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, entre eles reduzir a pobreza e atingir o ensino básico universal.
Um dos principais motores daqueles anos de glória foi a capacitação promovida para os beneficiários do Bolsa Família. Muitos começaram a investir no próprio negócio, mais que dobrando o número de microempreendedores, de 283 em 2013 para 736 em 2014, segundo o IGBE. De acordo com Pollyana Dutra, o foco principal do programa era capacitar as mulheres.
O município se destacou também na educação. Em 2015, os alunos dos anos iniciais da rede pública da cidade tiveram nota média de 5.7 no Ideb, o que colocou Pombal como sexta melhor cidade entre 223 municípios paraibanos.
Hoje, a realidade é outra. Ao longo de quatro meses, a reportagem da Pública conversou com moradores da cidade e ouviu histórias repetidas: auxílios sociais cancelados sem justificativa clara, aposentadoria rural cada vez mais difícil de obter, e a comida que começa a faltar na mesa.
O futuro ficou no passado
Hélio encosta na porta, olha para a rua sem asfalto e conta que chegou a acreditar num futuro melhor. “Eu vivo doente, mas vivo de pesca, que o dinheiro não dá. A casa não é minha, é de um irmão meu que me deu para morar, mas eu pago água, luz, gás. Estou comendo porque a minha mãe manda as coisas. Eu pensei que nós íamos ter um futuro melhor. Meu futuro é caçar um canto para morrer e pronto”, diz. Naquele dia ele não tinha mais do que arroz e dois pedaços de mortadela para comer e dar aos filhos.
Em setembro do ano passado, sua aposentadoria por invalidez foi suspensa. Em novembro, a perícia, realizada no próprio INSS, recusou o apoio financeiro. Lá pela mesma época, veio o corte do Bolsa Família – este foi cortado justamente por causa da aposentadoria que ele recebia, pois constava no sistema que não havia necessidade para os dois apoios.
Ao explicar sua situação à reportagem, Hélio fica nervoso. Cai, desacordado, no chão. A cena é corriqueira na casa do pescador, e depois de ser socorrido pela filha e o sobrinho ele se recusa a ir ao hospital: “Não adianta nada”.
Por causa de um acidente na infância, Hélio tem fraturas na mão e na perna direita, e foi diagnosticado com epilepsia pós-traumática. É por isso, conta, que jamais conseguiu um emprego formal. Sempre viveu da pesca.
Apenas em 2012, conseguiu se aposentar por invalidez, passando a receber um salário mínimo. Complementava a renda com o Bolsa Família em apoio à educação dos filhos: R$ 466. Separado da ex-mulher, alcoólatra, ele cria os quatro com pouca ajuda. A mais velha, de 16 anos, foi embora com o namorado para Goiás, em busca de condições melhores. O menino de 14 anos está vivendo com a família da mãe. Ele cuida dos dois mais novos, uma menina de 13 e um menino de 10. Desiludidos, todos abandonaram a escola depois do corte no Bolsa Família. Este ano, só os dois mais novos voltaram. “Eu não queria que eles parassem. Conversei com os professores, que me disseram que eles estavam muito agressivos, não faziam a tarefa”, diz o pai.
“Só Deus e Nossa Senhora Aparecida podem fazer algo por mim. Eu vou recorrer na Justiça [para conseguir a aposentadoria] pelas crianças, para não vê-las passando fome. Eu só tenho pena delas, de mim não porque eu já estou cheio de doenças”, suspira. “Eu nem posso ficar só. Quando vou pescar, é com alguém porque eu tenho esse problema na minha cabeça.” Foi só no ano passado que conseguiu fazer uma tomografia, paga por um vereador da cidade. “O médico me passou quatro tipos diferentes de remédios, mas eu já até perdi as receitas. Isso foi ano passado, quando cortaram tudo. Eu nunca tive dinheiro para comprar nenhum.”
Política de governo iniciada por Michel Temer
O benefício de Hélio foi só um de um total de 552 mil que foram cancelados nos últimos dois anos em todo o Brasil, após o “pente-fino” do INSS. O processo de revisão das aposentadorias começou a ser realizado em agosto de 2016, mesmo mês do impeachment de Dilma Rousseff, quando o então presidente Michel Temer encaminhou ao Congresso a Medida Provisória (MP) 739, que acabou perdendo a validade por não ter sido votada. Em janeiro de 2017, ele publicou a MP 767, com texto praticamente idêntico à anterior.
Essa medida restringiu o acesso aos benefícios previdenciários, em especial os benefícios por incapacidade: o auxílio-doença e a aposentadoria por invalidez. Com os ajustes, o prazo mínimo de contribuição para ter direito ao auxílio-doença, aposentadoria por invalidez ou salário-maternidade aumentou. O segurado deveria ter pelo menos seis meses de contribuições para receber o auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez, e cinco meses para ter direito ao salário-maternidade. A medida estabeleceu também um bônus para os médicos peritos do INSS que fizessem perícias extras nos casos de benefícios por incapacidade mantidos sem perícia há mais de dois anos. O benefício valia R$ 60, e os “incentivos” seguem em vigor por dois anos depois da Medida.
Cerca de 1,1 milhão de perícias foram feitas pelo órgão. No fim da operação pente-fino, foram cancelados 80% dos benefícios de auxílio-doença revisados e 30% das aposentadorias por invalidez, segundo o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). Em novembro do ano passado, o MDS anunciou que a revisão dos benefícios de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez tinha gerado uma “economia” de R$ 13,8 bilhões.
Essa não é a primeira vez que essas revisões acontecem, segundo o gerente executivo do INSS em João Pessoa, Rogério Oliveira. O diferencial dessa vez foi a criação de um programa específico através da medida provisória, que depois se transformou em lei. “Essa lei agilizou a análise dos benefícios para revisar os processos das pessoas que estariam recebendo há mais de dois anos. A diferença é que agora se tornou mais rigoroso”, salientou.
Segundo o cientista político e professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) José Henrique Artigas, embora várias cidades paraibanas tenham quase atingido Objetivos de Desenvolvimento do Milênio em meados desta década, a crise econômica trouxe desemprego e consequentemente a volta da fome – em especial para aqueles municípios que dependem do governo federal.
Com Pombal foi assim. De acordo com o IBGE, o número de pessoas ocupadas na cidade caiu 21% entre 2015 e 2016, de 4.054 para 3.200 pessoas. Já o número de pessoal ocupado assalariado era de 3.403 e caiu para 2.566, uma redução de 24%. O salário médio despencou de R$ 1.900 para R$ 1.700.
A recessão, somada aos cortes dos programas, faz com que o Brasil esteja voltando ao Mapa da Fome cinco anos depois de sair dele pela primeira vez, em 2014. É o que diz o Relatório Luz, elaborado por 20 entidades da sociedade civil e publicado em 2018. Em novembro a organização internacional Oxfam publicou um relatório demonstrando que, pela primeira vez nos últimos 15 anos, a redução da desigualdade de renda parou no Brasil. O relatório aponta que, em 2016, o espaço dedicado aos gastos sociais no orçamento federal retrocedeu 17 anos.
“Pelo menos 85% dos municípios brasileiros não possuem praticamente arrecadação tributária direta. Eles vivem de repasse do governo federal, principalmente o Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação], o Bolsa Família, o SUS e o Fundo de Participação dos Municípios. E os fundos de repasse vêm caindo nos últimos dois, três anos. A tendência é que as arrecadações orçamentárias caiam de novo em 2019”, esclarece Artigas.
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