Gilvan Freire
A convivência aproximada, firmada numa amizade que perdurou até o presente, num relacionamento de conterrâneos da mesma geração, registram a minha presença e a de Paulo Gadelha na vida sousense: ainda crianças com pequena diferença de idade, correndo as mesmas praças e ruas, na adolescência frequentado festas e reuniões, adultos, mergu-lhados nas águas turbulentas e agitadas da política de nossa terra. E considero, sem falsa modéstia, que marcamos a nossa presença ética e realizadora de ações que dignificaram os mandatos parlamentares o exercício de secretarias de Estado, que nos couberam.
Muitas são as lembranças, agradáveis e honrosas para mim, os registros que nos ligaram vida pública. Eu, cedo me isolei extramuros, Paulo prosseguiu e destacou-se mais no exercício de cargos relevantes: foi diretor do Banco do Nor-deste, Desembargado Federal, escolhido para uma cadeira entre os imortais da Academia Paraibana de Letras. Teve o meu voto para a sua eleição.
Na Paraíba, no Brasil e em outros países, juntos participamos de conclaves, um deles na companhia do escla-recido deputado Manoel Alceu Gaudêncio, representando a Assembléia Legislativa, na discussão de teses que tratavam de questões referentes à cidadania, aos direitos humanos, ao progresso e ao desenvolvimento econômico e cultural. Mas o que marcava mesmo a sua presença entre nós, era a vocação intelectual, a sua assiduidade na imprensa escrita, o culto à ciência do Direito, ele um constitucionalista de renome.
Dele recebi o seu livro “A Rosa e a França”, com uma intimação, segundo suas próprias palavras de ofe-recimento, para apresentá-lo aos nossos conterrâneos, o que fiz na solenidade do seu lançamento no auditório da Fa-culdade de Direito de Sousa, de que transcrevo alguns parágrafos.
Desejo destacar em Paulo Gadelha o caráter do político competente, do intelectual “engajado” no melhor estilo francês. Essas qualidades, muitas vezes, passam despercebidas da maioria das pessoas. E em cidades como a nossa, a questão genealógica sobreleva sempre a ideológica. Mas está feito o registro.
O advogado Paulo Gadelha pertence àquela ca-tegoria de bacharéis beletristas, que a Faculdade de Direito do Recife legou também aos paraibanos e espalhou na vida brasileira. Políticos, juristas, poetas, romancistas, historia-dores, críticos de artes, escritores enfim, que o espírito da velha escola, vivo, em todas as épocas, fez povoar nas páginas da história literária e das letras jurídicas do país. Os compromissos assumidos ao longo de sua vida, revelados nos textos do seu livro e na sua ação política, dão continuidade a uma tradição pernambucana, desde 1817 e 1824: o incon-formismo em face do tratamento discriminatório dos governos da União para com o Nordeste, ainda hoje uma controvérsia crucial para a unidade da Nação.
Esta marca de patriotismo e bravura foi honrada na Paraíba em Brejo de Areia, no Areópago de Itambé, na Fazenda Acauã, em Sousa, com Félix Antônio e os padres Arruda Câmara, Francisco Antônio e José Antônio Correia de Sá, Narciso da Costa Gadelha, Patrício José de Almeida, Luiz José Benevides e outros heróis da nossa história.
Refém da tradição filosófico-sentimental dos fatos pernambucanos, Paulo ressurge no cenário público, desta vez no ambiente intelectual. Falo de um ambiente onde também vivi, de fontes onde também bebi os mesmos ensinamentos, preparando-me para a vida e as responsabilidades profissio-nais. De lá vieram figuras inconfundíveis como Augusto dos Anjos, José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Epitácio Pessoa, Ernani Sátiro, João Agripino, Salviano Leite, Ivan Bichara, entre os paraibanos ilustres, egressos da vetusta Faculdade, oferecendo uma parcela significativa do ideário que moldou o perfil do estado, da sociedade brasileira, desde Abreu e Lima a Tobias Barreto, Clóvis Bevilácqua, Pinto Ferreira.
Em bancadas opostas, convivemos eu e Paulo Gadelha uma legislatura inteira na Assembléia Legislativa da Paraíba. Daí, poder oferecer um testemunho vivo e insuspeito sobre sua conduta de homem público.
Na agitação da vida política, nos momentos difí-ceis que marcaram a pressão da sociedade civil sobre os governos militares, reclamando democracia, contestando o arbítrio, a sua ação parlamentar crescia na tribuna pela crítica dos fatos, na defesa do Estado de Direito. A social demo-cracia, de que é moda falar-se hoje no Brasil, representava naqueles dias de repressão, uma idéia perigosa e contrária à concepção ditatorial dos governos de então, apoiados na famigerada Lei de Segurança Nacional.
Os Anais da Assembléia Legislativa guardam as corajosas intervenções do deputado Paulo Gadelha diante de um plenário perplexo. Assim, igualmente, a sua presença na imprensa, cujos trabalhos compõem o seu livro “A Rosa e a França”. Revelam o pensador que acredita na idéia do progresso humano, na capacidade de auto-aperfeiçoamento da humanidade. A filosofia, o direito, a economia, a literatura, as artes plásticas, são temas abordados com observações agudas e crítica percuciente, transformada em instrumentos de aná-lises dos fatos sociais. Uma consciência ligada ao racio-nalismo renascentista, ao Iluminismo. A forma breve e sucin-ta manifesta idéias arraigadas, fruto da especulação que alia a ação ao pensamento, como nos breves ensaios do longevo Bertrand Russel.
Sinto-me por esta razão, feliz e recompensado com esta amizade. Vejo que Paulo não renegou as suas idéias, pelo contrário, nelas ainda acreditava, divulgando-as em livro. A vida nos entregou aos nossos destinos pessoais. Distanciados pela ocupação que cada um abraçou, vivemos nossas preo-cupações, cumprimos nossas tarefas. Há quem diga, como o ensaísta norte-americano Francis Fukuyama, com quem não concordo, que chegamos ao fim da história, que a huma-nidade não se move mais no terreno da utopia, pulverizadas todas as ideologias. A falta de idéias, como acentua o ianque, atrai o homem para causas pequenas.
Meu caro Paulo, sabemos que os espíritos nos escutam, peço desculpas pelas digressões, a forma tumul-tuada das minhas palavras, neste momento de dor. Mas no caos da vida moderna, o que restaria a um pobre exilado rural? Como você em “A Rosa e a França”, repudio o trágico pessimismo, o desespero, os desvios totalitários nietzcheanos. O mundo contemporâneo, onde tudo que é sólido desmancha no ar, como acredita Marshall Bermam, mais do que nunca precisa do estoicismo-epicurismo que assegurava ser a vida o maior bem, em face da morte e do efêmero. É a minha crença. Você continua vivo entre nós com a obra de ação e pensamento que realizou, deixou como legenda.