Levantamento feito pelo GLOBO junto a sindicatos de delegados de polícia no Brasil mostra a precariedade do sistema de investigação criminal, especialmente no interior. A pesquisa obteve informações de 11 estados, que concentram 3.171 municípios. E, apenas neste universo, há 1.684 municípios — ou seja, mais da metade — que estão sem delegados, de acordo com as entidades de classe. Há ainda outras 2.399 cidades, de 16 estados, cujas associações não responderam aos questionamentos da reportagem de Chico Prado e Tiago Danta, do O Globo.
Em alguns casos, especialmente nas áreas rurais, moradores chegam a andar mais de 100 quilômetros para conseguir registrar um boletim de ocorrência, tirar o RG ou mudar a documentação do carro. Sem pessoal suficiente para investigar, crimes ficam sem solução e inquéritos se acumulam. A falta de policiais também traz uma série de problemas para os próprios delegados, que são obrigados a acumular mais de um posto, sem receber mais para isso, e a percorrer centenas de quilômetros para acompanhar ocorrências.
Os governos estaduais argumentam que algumas dessas cidades estão sem responsável pela Polícia Civil porque são muito pequenas. Afirmam que tentam organizar a distribuição dos profissionais de acordo com as regiões. Em pelo menos dois estados, Pernambuco e São Paulo, delegados relataram que a falta de investigação nas cidades pequenas levou grupos criminosos a apostarem em roubos a caixas eletrônicos.
Minas Gerais é o estado com mais cidades sem delegado, entre as que responderam. Dos 853 municípios mineiros, 607 não têm delegado, de acordo com o sindicato da categoria. Ao contrário de outros estados, que possuem institutos responsáveis pela emissão do RG e de documentos de veículos, em Minas o documento é impresso na delegacia. Quando não encontra um delegado, o morador precisa ir a outra cidade.
DELEGADO ‘TENTA’ APURAR EM CINCO CIDADES
Responsável por três cidades a cerca de 310 quilômetros de Belo Horizonte, o delegado Henrique Franco fica a maior parte do tempo em Pirapora, onde está a delegacia regional, a cerca de uma hora de viagem dos outros dois municípios que atende.
— É uma área de grande extensão territorial, com muita zona rural. Tenho que me dedicar ao plantão em Pirapora e chego a ficar só uma semana, por mês, em Várzea da Palma — diz Franco, que ilustra a situação: — Meu chefe cuida de São Romão e precisa pegar rodovia, estrada de terra e até balsa. De duas a três horas de viagem, dependendo do dia.
A Polícia Civil de Minas Gerais informou que não divulga o efetivo por questões de segurança e que “realiza de forma técnica realocações em seu quadro de pessoal, tendo sempre o objetivo de melhor atender as demandas necessárias e a população”. Recentemente, foram contratados investigadores, peritos e legistas. Segundo a polícia, nenhum município de está “sem o devido atendimento”.
O delegado Murilo Gonçalves, de 31 anos, está há 4 anos na Polícia Civil de Goiás e já pensa em deixar a corporação. Há dois meses, Gonçalves tenta investigar os crimes cometidos em cinco cidades do estado. Lotado em Jussara, a 230 quilômetros de Goiânia, ele também é responsável por Fazenda Nova, Novo Brasil, Santa Fé e Britânia — essa última ele não conseguiu visitar nos últimos dois meses.
— Faz dois meses que assumi essas cidades e ainda não consegui visitar Britânia, que fica a uns 100 quilômetros de Jussara, não sobrou tempo. Não tem nem motorista, na maioria das vezes eu vou dirigindo. Já pensei em largar tudo e prestar concurso pra outra carreira, mas falta tempo até pra estudar — diz.
Dos 246 municípios de Goiás, 162 não têm delegados e o déficit atual, segundo a assessoria da Polícia Civil, é de 193 profissionais. A presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia Civil de Goiás, Silvana Nunes Ferreira, atesta o desânimo da categoria e afirma que o índice de desistência da profissão gira em torno de 25%. A Secretaria de Segurança Pública de Goiás não respondeu.
DÉFICIT DE 6 MIL DELEGADOS NO PAÍS
No Ceará, o delegado Carlos Eduardo Silva de Assis, titular da delegacia de Jaguaribe, tem se deslocado tanto entre uma cidade e outra que O GLOBO não conseguiu localizá-lo no posto policial na tarde de 14 de dezembro. Assis atende mais sete municípios. Por telefone, a secretária da delegacia de Jaguaribe informou que, naquele dia, o delegado estava em oitivas desde às 8h e só terminaria o trabalho do dia às 22h.
— Tem que ficar de uma cidade pra outra, 50 quilômetros aqui, 40 quilômetros ali — diz Assis.
O delegado Josel Dantas, diretor da Associação dos Delegados de Polícia do Ceará, diz que não há delegados em 86 municípios dos 184 do estado.
— Isso aí prejudica o atendimento porque a população deixa de registrar ocorrência. Quando o crime acontece, o delegado chega bem depois ao local e tem dificuldade até para encontrar testemunhas para ouvir depoimento.
O governador do Ceará, Camilo Santana (PT), anunciou em novembro último a convocação de 476 inspetores e 201 escrivães, todos aprovados no último concurso realizado em 2015.
Em nota, a Secretária da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará afirmou que “é incorreta a informação de que um delegado chegue a responder por oito delegacias” e informou um número menor de cidades sem distritos policiais. A pasta disse que “nas 62 cidades que não possuem unidades fixas da Polícia Civil, as demandas são atendidas por delegacias regionais e municipais próximas”.
A necessidade de se deslocar por estradas para atender ocorrências, extrapolando o horário da jornada de trabalho provocou uma situação trágica em São Paulo. Em 30 de março de 2017, o delegado Davi Ferreira da Rocha morreu em um acidente de trânsito quando se deslocava para atender um plantão entre São José do Rio Preto e Fernandópolis, cidades distantes 116 quilômetros. Sem motorista, ele mesmo dirigia a viatura que bateu na traseira de um caminhão na estrada.
— O delegado fica 24 horas de sobreaviso, desrespeitando todas as normas internacionais de trabalho. O governo tem que ser cobrado por situações como essa — diz Raquel Kobashi Gallinati, presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo.
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informou que “todas as cidades contam com delegados que respondem pelas unidades policiais”. Ainda segundo o governo paulista, fazer um delegado cuidar de mais de um município, não traz “prejuízos às atividades de polícia judiciária”.
O presidente da Federação Nacional dos Delegados de Polícia Civil, Rodolfo Laterza, projeta um déficit de delegados de aproximadamente 6 mil profissionais em todo o país. Ele cita o Piauí, onde 160 delegados precisam dar conta do trabalho de 224 cidades.
No Rio, os 92 municípios estão cobertos por 593 delegados. O presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do estado, Rafael Sarnelli Lopes, diz que “essa (falta de delegados) não é o maior problema” do estado, marcado pelos altos índices de violência.