A população negra da Paraíba correspondeu há pouco mais de 200 anos a 51,5% das pessoas que viviam no estado. Conforme Matheus Guimarães, mestre em História pela UFPB e pesquisador da herança africana na Paraíba, entre 1700 e 1800, a população negra se manteve sempre como duas vezes maior que a população branca, sendo 24,7 mil negros para 12,3 mil brancos em 1798, especificamente. Neste mesmo período, 4.424 africanos escravizados desembarcaram no estado, informa reportagem de André Resende, do G1.
Apesar da presença marcante na composição histórica da nossa sociedade, poucos foram os espaços que mostraram a ocupação negra em João Pessoa e no restante da Paraíba, segundo o pesquisador. O debate sobre a valorização da cultura negra volta à tona nesta segunda-feira (20), dia em que é celebrada nacionalmente a Consciência Negra.
O dia 20 de novembro, data em que Zumbi dos Palmares morreu, não é considerado feriado estadual ou municipal na capital paraibana, embora um projeto de lei tenha sido apresentado em 2007 na Câmara de Vereadores de João Pessoa. Conforme Censo do IBGE de 2010, a população negra da Paraíba, somando pardos e pretos, é de cerca de 50%.
Segundo dados do Sistema de Apoio ao Processo Legislativo (SAPL), o projeto de autoria de João Almeida, deu entrada na Comissão de Constituição e Justiça da casa no mesmo ano, chegou a ser lido no plenário, mas 10 anos depois não teve sequência.
Embora a presença da população negra na Paraíba tenha sido marcante, seus marcos históricos, monumentos e registros foram apagados ao longo dos séculos. Segundo Guimarães, a historiografia aponta para um abrandamento ou até a verdadeira “inexistência” da escravidão na Paraíba. Em contraponto a essa corrente, vários historiadores paraibanos e brasileiros buscam mostrar o impacto negativo da opressão e destacar a presença da população negra e sua resistência à escravidão.
“Desde que se estabeleceu o uso de pessoas escravizadas na Paraíba e no Brasil, houve uma preocupação de reprimir suas manifestações, de forma que esses negros não se vissem como pessoas autônomas. Os negros eram oprimidos na escravidão, do ponto de vista físico, econômico e social, e oprimidos na questão cultural e simbólica”, explica Guimarães, autor da pesquisa de dissertação Diáspora Africana na Paraíba do Norte.
Apesar de escondidos, tais documentos que comprovam o trato de humanos como bens semoventes ainda estão no nosso convívio, nos cartórios de notas espalhados pela Grande João Pessoa. Contratos de compra e venda, cartas de alforria, nascimento e óbitos de negros escravizados habitam os arquivos dos cartórios que são usados rotineiramente pela população.
Como destaca a historiadora Diana Soares de Galliza, no artigo Análise das fontes para o estudo da Escravidão na Paraíba, o escravo estava incluído na categoria de bens semoventes, juntamente com os animais. Mas seu valor era, por vezes, superior ao de rebanhos e propriedades rurais. “Por exemplo, o rebanho de Manuel Ferreira da Cunha, composto de 53 cabeças de gado vacum e cavalar, foi avaliado em 901 mil-réis, enquanto o valor de sua escrava Delfina, de vinte anos, era de 1.250 mil-réis”.
No ano de 1798, conforme levantamento feito por Matheus Guimarães, é apontado que 30% da população de João Pessoa chegou a ser de pessoas escravizadas, um total de 1.815 negros escravizados em uma população total de 4.138 pessoas. O número de negros escravizados continuou subindo nas décadas seguintes, atingindo a marca de 3.512 escravos em 1850, embora a proporção para pessoas livres tenha caído por conta da explosão demográfica vista no Brasil no início do Séc. XIX.
“Os documentos da época mostravam ainda que no caso do registro de pretos e pardos, era necessário especificar se eram livres, diferentemente do branco, que não exigia essa informação. Esse detalhe é apenas uma pequena representação da opressão que o negro, mesmo livre em sua grande maioria, recebia na sociedade escravista. Havia espaços que nem mesmo livres, os negros ocupavam, algo próximo do que vemos ainda nos dias de hoje”, completou Matheus Guimarães.
Ainda segundo o pesquisador, além da opressão na composição da sociedade, o negros livres viviam constantemente assolados pelo medo da reescravização, quando muitos ex-escravizados, livres por força da carta da alforria, tinham o documento destruído e eram traficados para serem vendidos novamente como escravos em outra parte do país.
Para Guimarães, à época, todo preto ou pardo era, a princípio, um escravo que deveria provar sua liberdade. “Trazendo o debate para os tempos atuais, é praticamente uma opressão semelhante que é imposta à população negra da periferia, vista muitas vezes como criminosa e que por isso precisa provar sua inocência a todo tempo. Uma suspeição que parte, nesses dois períodos, das próprias autoridades”, arrematou Matheus Guimarães.
Em vigor desde 2011, a lei federal nº 12.519, oficializou no dia 20 de novembro, dia da morte do principal líder negro na luta contra a escravidão, o dia em que a população brasileira deve refletir sobre a inserção do negro na sociedade.
“Se não falamos na história da escravidão, da trajetória do nosso povo negro, não pensamos o racismo. O dia da Consciência Negra não serve apenas para pensarmos na influência negra da nossa sociedade, mas para encorajar a denúncia contra o racismo”, concluiu o historiador e pesquisador pela UFPB.
A opressão ao povo negro e sua cultura foi uma tônica antes e depois da abolição da escravidão, promulgada em maio de 1888. Neste período, tradições foram reprimidas, espaços físicos, como a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Cenro de João Pessoa, onde se localiza o Ponto de Cem Réis atualmente, foram destruídas. E mesmo assim, a cultura negra, em todas as suas vertentes, resistiram com o seu povo e influenciaram no modo de vida de toda sociedade.