O Ministério da Transparência suspendeu por dois anos a investigação de desvios praticados pela Engevix na Petrobras, sob a justificativa de que a empreiteira propôs um acordo de leniência —espécie de delação premiada para pessoas jurídicas.
Documentos do TCU (Tribunal de Contas da União), obtidos por reportagem de Fábio Fabrini e Júlio Wiziack, da Folha, mostram que, enquanto as apurações ficaram paradas, a construtora, alvo da Lava Jato, não confessou ilícitos, não colaborou com a descoberta de novos crimes e as negociações fracassaram.
A suspensão de investigações tem sido um padrão na Transparência. Onze empresas suspeitas de corrupção, a maioria alvo da Lava Jato, tiveram processos administrativos de responsabilização (PARs) congelados para negociar colaborações, segundo dados da própria pasta. Porém, até agora, só uma, a UTC Engenharia, chegou a um termo com o governo.
A Transparência não divulga os nomes, alegando sigilo. A Folha apurou que entre elas estão investigadas na Operação Lava Jato, como Engevix, Galvão Engenharia e a holandesa SBM.
O TCU, que investiga os procedimentos do órgão, entende que a pausa não tem amparo legal e favorece indevidamente as empresas.
Segundo a corte, a conduta contribui para que as irregularidades prescrevam sem que haja a apuração adequada e ainda engorda o caixa das envolvidas, pois, enquanto não são punidas pelo governo, elas continuam aptas a fechar contratos públicos.
Um relatório sigiloso da corte propõe que a controladoria apresente, em 60 dias, um mapeamento completo das tratativas em curso. O caso seria julgado na quarta-feira (25), em sessão reservada do tribunal, mas houve pedido de vista.
A investigação sobre a Engevix foi suspensa em 6 de abril de 2015 e só foi retomada em 10 de abril deste ano, após a Transparência e a AGU (Advocacia-Geral da União) colocarem fim às negociações para um acordo de leniência.
Nesse período, os prazos de prescrição correram. Em 2015 e 2016, a empresa recebeu do governo ao menos R$ 61 milhões, fruto de contratos que já vigoravam. Em março deste ano, foi declarada inidônea num processo que tramitou no TCU e proibida de participar de novas licitações. Ainda não houve punição do governo.
O tribunal fez auditoria na negociação da Transparência com a Engevix.
“A suspensão dos processos de responsabilização vai de encontro à finalidade da lei 12.846/2013 [Lei Anticorrupção], que visa atender primordialmente ao princípio da moralidade. Vai de encontro também à finalidade do próprio acordo de leniência como ferramenta de investigação, que visa a identificar e responsabilizar de forma célebre os responsáveis por atos ilícitos”, diz trecho de relatório sobre o caso.
A prática do Ministério da Transparência vem no momento em que uma nova lei amplia os órgãos aptos a negociar leniência, mas torna o procedimento mais inseguro para as empresas.
OUTRAS EMPRESAS
A investigação sobre outras empreiteiras também hibernou no Ministério da Transparência. É o caso da Galvão Engenharia, alvo da Lava Jato.
Em março de 2015, a empresa propôs um acordo de leniência ao governo e teve seu processo de responsabilização suspenso. Em dezembro do ano seguinte, as negociações ainda estavam em fase inicial. Nem uma minuta de acordo havia sido feita.
Em março deste ano, a empresa interrompeu as tratativas com a Transparência para negociar com o Ministério Público Federal. O TCU alega que também houve suspensão indevida nesse caso.
Outro caso que permanece em impasse é o da SBM Offshore.
Primeira a acertar leniência com o governo, há mais de um ano, a empresa holandesa ainda não teve seu acordo aprovado definitivamente, pois a 5ª Câmara da Procuradoria-Geral da República (PGR) apontou irregularidades nas cláusulas em setembro do ano passado.
Na segunda-feira (9), o ministro Vital do Rêgo, do TCU, suspendeu o processo por 45 dias até que a empresa e o Ministério da Transparência corrijam os problemas.
A SBM é uma multinacional que aluga plataformas para a Petrobras, com quem mantém contratos que somam cerca de US$ 22 bilhões.
Em 2014, após uma apuração interna, a empresa admitiu que seus lobistas pagaram US$ 139 milhões em propinas no Brasil ao Ministério Público da Holanda, que investiga o esquema de corrupção também praticado pela empresa em Angola e Guiné Equatorial. O caso também foi apurado na Lava Jato.
Um dos principais entraves para o acordo é quanto ao dano causado.
Os cálculos foram feitos com base nas propinas pagas e nos lucros de contratos obtidos ilicitamente, mas o prejuízo a restituir ao erário pode ser maior, em razão de superfaturamento nos valores dos serviços.
Por isso, exige-se que a empresa apresente documentos para um cálculo mais preciso das perdas. Hoje, se cobra da SBM no Brasil cerca de R$ 1 bilhão.
Outro ponto controverso diz respeito à forma de pagamento. A empresa quer quitar parte do débito prestando serviços à Petrobras. Os valores de ressarcimento seriam descontados das faturas a receber da estatal.
Esses pontos, agora questionados pelo TCU, são basicamente os mesmos que levaram a 5ª Câmara a reprovar o acordo.
OUTRO LADO
O Ministério da Transparência informou que atua “de forma regular e em total respeito às leis e normas vigentes, visando unicamente ao interesse público”. Em nota, a pasta sustentou que “nunca houve interrupção de investigações, visto que o acordo de leniência é também um meio de obtenção de provas”. “Não há processos parados”, reiterou.
Questionada pela reportagem da Folha, a Transparência não detalhou qual foi o período de suspensão de cada um dos processos administrativos de responsabilização (PARs).
“Encontram-se suspensos os PARs daquelas empresas que estão em negociação de acordo de leniência. Ressaltamos que não existe um período máximo ou mínimo de suspensão e que a CGU [Transparência] realiza o controle para evitar a prescrição dos ilícitos. Desde o início do ano, o prazo inicial de suspensão é de 180 dias.”
A pasta alegou que, em razão do sigilo imposto pela Lei Anticorrupção, não se manifesta sobre nomes de empresas, possíveis termos, existência de acordos, bem como detalhes de negociações em andamento.
EMPRESAS
A Engevix informou, por escrito, que o governo, que cancelou a negociação de seu acordo, “faria melhor se admitisse que está firmemente empenhado em inviabilizar as empresas extorquidas pela Petrobras – hoje, estranhamente, no papel de vítima”.
“Acreditar que se pode recuperar a popularidade exterminando empresas é uma aposta perversa.
Desmontar o parque empresarial brasileiro de infraestrutura como se fechar empresas fizesse parte de alguma política de combate à corrupção é um erro fatal”, criticou a empresa por meio de nota.
A Engevix sustentou ter atendido às exigências da Transparência para o acordo.
“A empresa entregou farto material para as autoridades, motivo pelo qual o órgão chegou ao estágio de calcular a multa. A má vontade da AGU [Advocacia-Geral da União] e da CGU [Transparência] se constata pelo fato de a comissão de análise ter sido trocada nada menos que três vezes.”
A Engevix acrescentou ter adotado “sério e consistente” programa de compliance [sistema interno de controle para coibir, identificar e também punir eventuais atos de corrupção que venham a ser praticados por funcionários].
“O aparente motivo para as dificuldades no acerto parece ser financeiro, o que revela uma postura que acaba beneficiando empresas com maior poder financeiro, enquanto sacrifica as que não têm fôlego para arcar com multas desproporcionais e sem lógica. O órgão cria um purgatório discricionário em que os que cometeram mais crimes se safam pagando”, acrescentou a Engevix.
Consultadas novamente sobre as críticas da empreiteira, AGU e CGU não quiseram se manifestar.
Galvão Engenharia e SBM não comentaram.