A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de transferir para Câmara e Senado a atribuição de dar a palavra final sobre a aplicação de medidas cautelares contra deputados e senadores foi a mais impactante vitória do meio político sobre a Operação Lava-Jato, mas nem por isso os parlamentares estão satisfeitos. Um grupo expressivo deles se articula para aprovar projetos que, se levados adiante, podem inviabilizar de vez a Lava-Jato e outras investigações sobre corrupção. Entre as propostas de interesse deste grupo estão a proibição de delação de réus presos, a restrição de conduções coercitivas, a fixação de limites para investigações sobre escritórios de advocacia e a lei de abuso de autoridade.
A movimentação mais recente ocorreu no último dia 26. Projeto que trata do abuso de autoridade, até então parado na Câmara e que já foi aprovado no Senado, será levado a uma comissão especial. O texto impõe restrições à condução coercitiva. A comissão especial foi criada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), na última quinta-feira, um dia depois da derrubada da segunda denúncia contra o presidente Michel Temer, conforme revelou o GLOBO.
DELAÇÕES E CONDUÇÃO COERCITIVA EM XEQUE
Pelo projeto, é crime “decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado, manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento do juízo”. O expediente da condução coercitiva começou a ser usado com mais frequência na Lava-Jato. Para investigadores, os depoimentos coercitivos são importantes, especialmente quando é necessário evitar que réus combinem versões.
— Há um clima no Parlamento, com apoio do Poder Executivo, de frear as investigações da Lava-Jato e, se possível, colocar em xeque os resultados por ela obtidos até agora. Este é o clima predominante. Depois da manutenção do mandato do senador Aécio Neves e da rejeição da denúncia contra Temer, esse movimento ganhou mais força — disse Alessandro Molon (Rede-RJ).
Os lances mais diretos da reação anti-Lava-Jato partiram dos deputados Wadih Damous (PT-RJ) e Danilo Forte, sem partido, mas a caminho no DEM do Ceará. Damous apresentou um projeto que proíbe a delação de réus presos e a divulgação de depoimentos colhidos no âmbito de uma colaboração premiada. “Somente será considerada para fins de homologação judicial a colaboração premiada se o acusado ou indiciado estiver respondendo em liberdade ao processo ou investigação instaurados em seu desfavor”. Ou seja, acordo de delação com réu preso não teria qualquer validade jurídica.
Na mesma linha, o presidente da comissão especial de reforma do Código de Processo Penal, Danilo Forte (Sem partido-CE), sugeriu a inclusão de uma proposta similar na reforma. Uma vez incluído no pacote sobre o CPP, o projeto teria mais chances de ser aprovado. As mudanças nas leis processuais, embora extremamente relevantes, não costumam despertar curiosidade, a não ser de especialistas e de pessoas diretamente afetadas por alguma regra em debate.
— A gente precisa regulamentar o instituto da delação. A delação precisa ser entendida como elemento de prova e não de defesa. Pessoas que estão em situação degradante na cadeia são capazes de criar situação fantasiosa para sair da prisão — afirma Forte.
O relator da reforma, João Campos (PRB-GO), ouviu o pedido do colega do Ceará, mas disse ao GLOBO que não terá como acolher a sugestão.
— Eu sou a favor da delação, inclusive de réus presos — disse Campos.
Mas a comissão é um colegiado. Um deputado pode apresentar uma emenda ao relatório final e, com o apoio da maioria, se sobrepor ao texto do relator. As pressões contra o modelo atual de delação, muito utilizado na Lava-Jato, tiveram início no Senado, numa articulação dos senadores Renan Calheiros (PMDB-AL) e Romero Jucá (PMDB-RR). Perderam força no momento de maior popularidade da Lava-Jato, mas voltaram a ganhar força com a rejeição da denúncia contra Temer e o esvaziamento dos protestos de rua contra a corrupção.
— Estamos vivendo uma reação orquestrada — afirma o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima.
As delações de réus presos têm sido fundamentais na Lava-Jato. Desde seu início, procuradores têm dito que mais da metade das delações partiu de réus soltos — estatísticas verdadeiras que não explicam o conjunto da obra. Os mais impactantes acordos de delação foram feitos com réus presos. Exemplos disso seriam as delações pioneiras de Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef. O mesmo pode ser dito em relação a Marcelo Odebrecht, que liderou a delação de 77 altos dirigentes da Odebrecht e ainda permanece preso.
BLINDAGEM PARA ADVOGADOS
A reação não para por aí. Deputados também estão se articulando para aprovar regras restritivas às investigações sobre advogados a partir de um projeto do senador Cássio Cunha Lima (PSDB-PB). A proposta já foi aprovada pelo Senado sem maiores dificuldades e agora aguarda parecer do relator, Damous, na CCJ da Câmara. Pelo projeto, “violar direito ou prerrogativa do advogado” constitui crime e pode ser punido com até quatro anos de detenção.
O artigo 7º do Estatuto do Advogado diz que é direito do advogado “a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia”. O projeto prevê ainda que, em casos de condução coercitiva e prisão arbitrária, o juiz pode perder o cargo e ficar proibido de retornar ao serviço público por até três anos. O projeto abriria brechas para blindar advogados suspeitos da prática de crimes.
— Estão dando uma imunidade para os advogados que não existe nem para eles — afirma o presidente da Ajufe, Roberto Veloso.
Também está em curso na reforma do Código de Processo Penal a consolidação da ideia contrária a conduções coercitivas. Neste caso, um dos pontos mais vulneráveis da Lava-Jato. João Campos entende que a lei em vigor só prevê a condução coercitiva de pessoas que não atendem, de forma injustificada, intimações para depor. Ele disse que a medida é válida para vítimas e testemunhas. Embora não diga claramente, entende também que é um direito extensivo a investigados. Para ele, a condução coercitiva de um investigado é desnecessária porque um réu não é obrigado a produzir provas contra si mesmo. Ou pode ficar calado.
A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) já acendeu um sinal de alerta sobre a movimentação dos parlamentares. Em recentes declarações públicas, o juiz Sergio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba, também chamou a atenção para o risco de medidas que, em conjunto, formariam um bloco oposto ao pacote de medidas do Ministério Público Federal contra a corrupção. A trama é urdida em várias frentes e conta com o apoio às vezes discreto, e quase sempre eficaz, de políticos de várias tendências ideológicas, mas com um objetivo comum: sair de vez das cordas e partir para o ataque, especialmente porque as eleições de 2018 estão se aproximando.