A teimosia e a fama de cabeça dura parece que não são por acaso: dizem que os paraibanos, quando cismam com alguma coisa, vão à luta e, determinados, conseguem o que querem. Eles têm garra, criatividade, perseverança e resiliência. O chef Onildo Rocha, é, como dizem em linguajar típico da região, “cabra quente que peleja e não é de arrudiar”. Ele tomou para si o dever de dar visibilidade e mostrar o valor da culinária e dos ingredientes paraibanos no desenvolvimento da nova gastronomia do Brasil, revela O Globo.
A Paraíba faz divisa com os estados do Rio Grande do Norte, Pernambuco e Ceará, e lá nasceram muitos brasileiros notáveis: os imortais da Academia Brasileira de Letras (ABL) Ariano Suassuna e José Lins do Rego, o poeta Augusto dos Anjos, o jornalista e empresário Assis Chateaubriand, o Chatô, o Paralamas do Sucesso Herbert Vianna e a cantora Elba Ramalho, para ficar somente em alguns nomes. É uma terra marcada pela inclemência do sol e agruras climáticas, o que exige, além de esperança, gente habilidosa e inventiva para cuidar do pedaço.
Onildo foi incentivado por seu mestre, Laurent Suaudeau, chef francês radicado no Brasil, a aprofundar os estudos e a descobrir e entender suas raízes em campo, observando o gestual e o modus operandi. Apaixonado por seu estado e preocupado com o descaso com que eram tratados hábitos e costumes seculares de seu povo, adotou os conceitos do Movimento Armorial (capitaneado por Ariano Suassuna para valorizar a cultura popular do Nordeste brasileiro, disposto a realizar uma arte brasileira erudita a partir das raízes populares do país), e vem, informalmente, desempenhando o papel de embaixador da cozinha paraibana contemporânea. Depois de criar o bufê e a casa de festas Roccia, que deu estrutura e experiência para ele e sua equipe, Onildo realizou o sonho de montar o restaurante Roccia, o lado poético de suas atividades, onde cada detalhe é pensado para valorizar a cultura paraibana, também na capital do estado, João Pessoa. Onildo não para. Na próxima quinta-feira, por exemplo, vai realizar no seu restaurante um jantar com menu degustação a seis mãos.
Neste encontro, Onildo estará ao lado dos chefs Thiago Castanho, do Remanso do Bosque, de Belém, e de André Saburó, do Quina do Futuro, de Recife. Noite mais regional, impossível.
Este tipo de intercâmbio tem sido uma constante. Com o chef gaúcho Marcelo Schambeck, do restaurante Del Barbiere, e a chef Bel Coelho, de São Paulo, Onildo integra o projeto Mapioca, promovendo jantares com menus co-criados por eles em seus respectivos restaurantes, “unindo” três regiões do Brasil. O nome Mapioca seria uma referência ao ingrediente-estrela do menu, chamado de macaxeira, aipim ou mandioca conforme o estado brasileiro.
Em João Pessoa, o próprio ambiente do restaurante Roccia exala brasilidade, que pode ser vista nos painéis da artista Maria do Mares, que criou obras com os diversos matizes de terra do sertão, uma espécie de tabela Pantone de argilas; nas cadeiras do artista Sergio Matos, feitas com corda e colheres de pau; e nos pássaros típicos do estado esculpidos por Bento de Sumé. As receitas criadas por Onildo são feitas com produtos de diversas regiões da Paraíba:
— Muitos pratos são releituras de comidas que conheço desde a infância, apenas preparadas com paixão e técnicas culinárias e metodologia aperfeiçoadas.
São legumes orgânicos cultivados pelo agricultor Dedé na Ilha do Lucena; peixes e frutos do mar do Zé do Peixe, da Praia dos Seixos; cajá, umbu, caju e outras frutas orgânicas produzidas na Fazenda Tamanduá de Patos, com certificação orgânica e biodinâmica Demeter, do suíço Pierre Landolt; e os queijos de Taperoá, que compõem os pratos. O cuidado também está nos utensílios: louças de cerâmica e panelinhas são produzidas pelos artistas Chico Ferreira e Nevinha de Itabaiana.
O menu do Roccia é extenso e diversificado: pipoca de feijão-verde; camarão crocante com teryiaki de rapadura; caranguejo cremoso e chips de macaxeira; arroz vermelho de pato; ravióli de macaxeira com camarão-rosa e tutano; massa de caranguejo ao molho de lambretas e musseline de jerimum; filé curado, arroz de nata, croquete de queijo coalho e vinagrete de feijão-verde; bolo de macaxeira, caramelo de rapadura e sorvete de queijo de cabra; pudim de paçoca; e sorvete de cajá.
Em João Pessoa, o “arroxado” Onildo está cercado de uma turma que, como ele, ama a Paraíba e partilha dos mesmos valores e objetivos. Gente como Ana Cloris, cuja família trabalha com engenho de açúcar há muitas gerações, e que se formou em confeitaria. Na sua Anita Pâtisserie, ela faz preciosidades como o batata-doce em creme, que parece marrom-glacê; bolo de macaxeira; bolo de rolo com banana, cheesecake de queijo de cabra com pitanga; diversos sabores de macaron, como cajá, acerola e alfazema de periquito; e bolo com mel de engenho.
Outro exemplo é o ex-jogador de vôlei de praia Pedro Peixoto, que largou o esporte profissional para criar a Farina, sua padaria artesanal, onde são preparados pães de fermentação natural que, entre seus ingredientes, usa inclusive farinha de arroz vermelho. São várias fornadas diárias de pão sourdough integral, de canela, de alecrim, de cacau e de muitos outros sabores.
Tem ainda seu Manelito Vilar, da Fazenda Carnaúba, um dos pioneiros na defesa da cultura brasileira, e seus filhos. Eles produzem queijos e também fazem parte da turma que luta pelo reconhecimento dos valores e produtos nordestinos. Seu Manelito afirma com veemência:
— O sertão precisa valorizar o que tem de bom e parar de menosprezar suas características naturais. Imagine, queriam que eu colocasse ervas finas de Provence nos queijos. Me recusei e coloquei especiarias nobres da Paraíba.
Ele começou a criação de cabras e a fabricação de queijos por insistência de seu primo, grande amigo e sócio, Ariano Suassuna, que investiu o prêmio que ganhou com sua obra “A Pedra do Reino” na aquisição de 200 animais. Assim, deu origem à criação de cabras e à produção de queijos. Cerca vez, Suassuna vaticinou:
— A cabra pode ser o caminho para a revitalização literária, política e econômica do sertão do Nordeste.
O pintor Manoel Suassuna, filho de Ariano e tutor das obras do pai, de barba cheia, cabelos longos e aparência de profeta, constata:
— Aprendemos a conviver com a seca, não adianta brigar contra ela, mas aprender com ela.
Joaquim e Ines, filhos de seu Manelito que cuidam da produção do queijo, contam que produzir laticínios é parte da cultura do sertão e é a melhor maneira de transportar e conservar o leite. Os queijos da Carnaúba são excelentes e vêm sendo premiados em vários concursos brasileiros. O chamado Dom Ariano é raro e de maturação longa. O Arupiara e o Cariri são delicados. Apesar da fama e da qualidade, a legislação obsoleta que não valoriza o produto artesanal de qualidade restringe sua produção e condena ao ostracismo artigo tão nobre.
A rebeldia, o respeito e o amor ao que é brasileiro têm sido o grande combustível para mostrar a fibra e a riqueza da Paraíba, ressalta Onildo:
— Quando as pessoas vão à Paraíba e comem no meu restaurante, procuro oferecer a nossa história e não apenas comida, mas tudo o que ela representa, a cultura, as tradições, o sabor e um gosto de quero mais.
Oxente, não fique abestado, visse. Vamos para a Paraíba!